quarta-feira, 30 de maio de 2012

A enguia

Burgos, 2010 © Adelina Silva

Lá vai o bom pároco dizer a sua missa e pregar o seu sermão de quaresma... Velho e gordo, muito velho e muito gordo, padre João é muito amado de toda a gente do lugar. E os pescadores que o vêm, vão deixando as redes e vão também seguindo para a igreja. E o bom pároco abençoa as suas ovelhas, e vai sorrindo, sorrindo, com aquele sorriso todo bondade e todo indulgência... À porta da igreja, a Sra. Tomásia, velha devota que o adora, vem ao encontro dele:
— Padre João! Aqui está um regalo que lhe quero oferecer para o seu almocinho de hoje...
E tira do cabaz uma enguia, uma soberba enguia, grossa e apetitosa, viva, remexendo-se.
— Deus te pague, filha! — diz o bom padre, — e os seus olhos fulguram, cheios de júbilo e gula. E segura a enguia, e vai entrando com ela na mão, seguido da velha devota. Que bela enguia! e padre João apalpa voluptuosamente o peixe...
Mas já aí vem o sacristão. A igreja está cheia... A missa vai começar... Que há de fazer o padre João da sua formosa enguia? Deixá-la ali, expô-la ao apetite do padre Antônio, que também é guloso? Padre João não hesita: levanta a batina e com um barbante amarra a enguia em roda da cintura.
A missa acaba. Padre João, comovido e grave, sobe ao púlpito rústico da igreja. E a sua voz pausada começa a narrar a delícia da abstinência e das privações: é preciso amar a Deus... é preciso evitar as torpezas do mundo... é preciso fugir das tentações da carne... E o auditório ouve com recolhimento a palavra suave do seu bom pároco.
Mas, de repente, que é aquilo? Os homens abrem os olhos espantados; remexem-se as mulheres, levantando curiosamente os olhares para o púlpito... É que, na barriga do padre João, debaixo da batina, alguma coisa grossa está bolindo... E já na multidão de fiéis correm uns risinhos abafados...
Olavo Bilac

sábado, 26 de maio de 2012

Quando nos olhamos

Paços de Ferreira, 2012 © Adelina Silva


(...)
Quando nos olhamos
Tu a límpida eu o turvo
Ver é sopro e desejo ubíquo

Criam o primeiro o último sonho.
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(...)
Lorsque nous nous regardons
Toi la limpide moi l’obscur
Voir est partout souffle et désir

Créent le permier le dernier songe.
Paul Éluard, in “Últimos Poemas de Amor”

Paços de Ferreira, 2012 © Adelina Silva


Nota: As imagens acima são trabalhos realizados por alunos da Escola Secundária de Paços de Ferreira e expostos no Dia Aberto da Escola.

domingo, 20 de maio de 2012

Elogio (barroco) da Bicicleta

Porto, 2010 © Adelina Silva


Redescubro, contigo, o pedalar eufórico
pelo caminho que a seu tempo se desdobra,
reolhando os beirais - eu que era um teórico
do ar livre - e revendo o passarame à obra.

Avivento, contigo, o coração, já lânguido
das quatro soníferas redondas almofadas
sobre as quais me etangui e bocejei, num trânsito
de corpos em corrida, mas de almas paradas.

Ó ágil e frágil bicicleta andarilha,
ó tubular engonço, ó vaca e andorinha,
ó menina travessa da escola fugida,
ó possuída brincadeira, ó querida filha,
dá-me as asas - trrim! trrim! - pra que eu possa traçar
no quotidiano asfalto um oito exemplar !
Alexandre O'Neill

quinta-feira, 17 de maio de 2012

Ilusão

Paris, 2012 © Adelina Silva


«As ilusões», dizia-me o meu amigo, «talvez sejam em tão grande número quanto as relações dos homens entre si ou entre os homens e as coisas. E, quando a ilusão desaparece, ou seja, quando vemos o ser ou o facto tal como existe fora de nós, experimentamos um sentimento bizarro, metade dele complicada pela lástima da fantasia desaparecida, metade pela surpresa agradável diante da novidade, diante do facto real».
Charles Baudelaire, in "Pequenos Poemas em Prosa"

sábado, 12 de maio de 2012

O tempo por dentro e por fora

Andorra, 2011 © Adelina Silva


Pára-me um tempo por dentro
passa-me um tempo por fora.

O tempo que foi constante
no meu contra tempo estar
passa-me agora adiante
como se fosse parar.
Por cada relógio certo
no tempo que sou agora
há um tempo descoberto
no tempo que se demora.

Fica-me o tempo por dentro
passa-me o tempo por fora.
Ary dos Santos

sexta-feira, 11 de maio de 2012

O Ser entre o Interior e o Exterior

Póvoa de Varzim, 2006 © Adelina Silva


Era um tipo estranho. Digo bem «um tipo». Olho um homem, uma mulher, e nem sempre me é possível tentar sequer abordar-lhe a pessoa por dentro. Porque há indivíduos que irresistivelmente reduzimos a «objectos». São os indivíduos «característicos» com tiques, com uma aparência de traços nítidos. Compreendo a tentação da caricatura: a um olhar sem mistério, os homens são a caricatura do homem. Por isso o romance tem ignorado a outra zona. Ah, escrever um romance que se gerasse nesse ar rarefeito de nós próprios, no alarme da nossa própria pessoa, na zona incrível do sobressalto! Atingir não bem o que se é «por dentro», a «psicologia», o modo íntimo de se ser, mas a outra parte, a que está antes dessa, a pessoa viva, a pessoa absoluta. Um romance que ainda não há... Porque há só ainda romances de coisas - coisas vistas por fora ou coisas vistas por dentro. Um romance que se fixasse nessa iluminação viva de nós, nessa dimensão ofuscante do halo de nós...

Vergílio Ferreira, in  " Estrela Polar"

domingo, 6 de maio de 2012

Miragem

Póvoa de Varzim, 2012 © Adelina Silva

Um mar sem ondas
        Que não molha mais
        Morreu seco
        Afundou-se na lonjura
        Infinita
        De si

Uma miragem confusa
        Esperança tremulante
        Ao longe
       
Não não canto o mar
       Como o concebes
       Canto o sem fim arenoso
       Que já foi água e hoje
       É pó

Um horizonte remoto
      Deserto sem tentações
      Que seduzem
      No Espelho da vaidade
      Que não há

Navegar é andar para sempre
      Assim
      Assado
      Sob o sol
      Até os ossos
      Que sorriem
      Branco

sexta-feira, 4 de maio de 2012

Da minha aldeia

Avila, 2009 © Adelina Silva

Da minha aldeia veio quanto da terra se pode ver no Universo...
Por isso a minha aldeia é tão grande como outra terra qualquer
Porque eu sou do tamanho do que vejo
E não, do tamanho da minha altura..

Nas cidades a vida é mais pequena
Que aqui na minha casa no cimo deste outeiro.
Na cidade as grandes casas fecham a vista à chave,
Escondem o horizonte, empurram o nosso olhar para longe
de todo o céu,
Tornam-nos pequenos porque nos tiram o que os nossos olhos
nos podem dar,
E tornam-nos pobres porque a nossa única riqueza é ver.
Alberto Caeiro, in "Poemas Completos"