domingo, 30 de março de 2014

Não sei, sei lá!

Porto, 2010 © Adelina Silva



O silêncio que sai do som da chuva espalha-se, num crescendo de monotonia cinzenta, pela rua estreita que fito. Estou dormindo desperto, de pé contra a vidraça, a que me encosto como a tudo. Procuro em mim que sensações são as que tenho perante este cair esfiado de água sombriamente luminosa que [se] destaca das fachadas sujas e, ainda mais, das janelas abertas. E não sei o que sinto, não sei o que quero sentir, não sei o que penso nem o que sou. 

Fernando Pessoa, in "O Livro do Desassossego"


sexta-feira, 21 de março de 2014

Full speed ahead

Bruxelas, 2013 © Adelina Silva

(...)

Ah, que pavor negregado
Ah, que angústia desvairada 
Naquele túnel sem termo 
Cavalgando sem cavalo!

Foi quando meu pai me disse: 
– Vem nascendo a madrugada... 
E eu embora não a visse 
Pressenti-a nas palavras 
De meu pai ressuscitado 
Pela luz da realidade.
(...)

Vinicius de Moraes, in "Prosa e Poesia Completa"


domingo, 16 de março de 2014

Ouve o silêncio

Sevilha, 2014 © Adelina Silva



Ouve como o silêncio 
Se fez de repente 
Para o nosso amor

Horizontalmente...

Crê apenas no amor 
   E em mais nada
Cala; escuta o silêncio 
   Que nos fala
Mais intimamente; ouve 
   Sossegada
O amor que despetala 
   O silêncio...

Deixa as palavras à poesia...

Vinicius de Moraes, in "Poesia Completa e Prosa"

sábado, 8 de março de 2014

O universo é o sonho

Sevilha, 2014 © Adelina Silva

1. Não conhecemos senão as nossas sensações. O universo é pois um simples conceito nosso. 
2. O universo porém — ao contrário de e em contraste com, as nossas fantasias e os nossos sonhos — revela, ao ser examinado, que tem uma ordem, que é regido por regras sem excepção a que chamamos leis. 
3. Àparte isso, o universo, ou grande parte dele, é um «conceito» comum a todos os que são constituídos como nós: isto é, é um conceito do espírito humano. 
4. O universo é considerado objectivo, real — por isso e pela própria constituição dos nossos sentidos. 
5. Como objectivo, o universo é pois o conceito de um espírito infinito, único que pode sonhar de modo a criar. O universo é o sonho de um sonhador infinito e omnipotente. 

(...)

Fernando Pessoa, in "Textos Filosóficos" 

quarta-feira, 5 de março de 2014

Conto de Fadas

Sevilha, 2014 © Adelina Silva

Eu trago-te nas mãos o esquecimento 
Das horas más que tens vivido, Amor! 
E para as tuas chagas o unguento 
Com que sarei a minha própria dor. 

 Os meus gestos são ondas de Sorrento... 
Trago no nome as letras duma flor... 
Foi dos meus olhos garços que um pintor 
Tirou a luz para pintar o vento... 

 Dou-te o que tenho: o astro que dormita, 
O manto dos crepúsculos da tarde, 
O sol que é de ouro, a onda que palpita. 

 Dou-te, comigo, o mundo que Deus fez! 
Eu sou Aquela de quem tens saudade, 
A princesa de conto: "Era uma vez..."

Florbela Espanca