sexta-feira, 27 de novembro de 2009

E Olé.... yo!

Sevilha, 2009 © Adelina Silva

(...)
Quilhas partidas, navios ao fundo, sangue nos mares!
Convezes cheios de sangue, fragmentos de corpos!
Dedos decepados sôbre amuradas!
Cabeças de creanças, aqui, acolá!
Gente de olhos fora, a gritar, a uivar!
Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh!
Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh!
Embrulho-me em tudo isto como numa capa no frio!
Roço-me por tudo isto como uma gata com cio por um muro!
Rujo como um leão faminto para tudo isto!
Arremeto como um touro louco sôbre tudo isto!
Cravo unhas, parto garras, sangro dos dentes sôbre isto!
Eh-eh-eh-eh-eh-eh eh-eh-eh-eh!

De repente estala-me sôbre os ouvidos
Como um clarim a meu lado,
O velho grito, mas agora irado, metálico,
Chamando a presa que se avista,
A escuna que vai ser tomada:
(...)

Ode Marítima - Álvaro de Campos (Fernando Pessoa)
Sevilha, 2009 (c) Adelina Silva

Rap da Tourada


terça-feira, 24 de novembro de 2009

Deixa-me entrar

Sevilha, 2009 © Adelina Silva

Abre o teu coração e deixa-o ficar aberto. Não é preciso que seja durante muito tempo. Só para que algumas palavras possam passar, sair e entrar. Palavras tão velhas que as há desde que as há. Sobretudo as que para saírem têm antes de entrar e o inverso. Todas as palavras merecem todo o respeito, o maior respeito. Porque mais não temos e talvez seja por isso que, ao começar a falar, já não é possível parar, mesmo querendo tudo calar.
Pedro Paixão, in “Viver Todos os Dias Cansa”

domingo, 22 de novembro de 2009

Bonsoir! C'est la folie!

Madrid, 2009 © Adelina Silva


Bonsoir
Ton véhicule n'a pas l'air d'avoir de passager
Peux-tu, Veux tu me recevoir
Sans trop te déranger?
(...)
Et si parfois l'on fait des confessions
A qui les raconter - même le bon dieu nous a laisse tomber
Un autre endroit, une autre vie
Eh oui, c'est une autre histoire
Mais a qui tout raconter?
Chez les ombres de la nuit?
(...)
Extracto da letra dos Stranglers - La Folie

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

Acto de Amor

Sevilha, 2009 © Adelina Silva



Da janela avista-se uma linha verde de ervas, rasteiras e macias, tão macias que podemos imaginar um corpo nu deitado sobre elas, entregando-se, num acto amoroso, à natureza que o gerou e completa. Cresce sobre essa linha uma árvore ainda jovem, com o tronco rasgado em dois braços abertos, erguidos para o céu. Pelas mãos de ambos chega-nos aos ouvidos uma melodia breve, um rumor elemental que nos fere os sentidos e ecoa pelas cavidades interiores do corpo, como um fio de água límpida que corre numa fonte, bem perto dali.
Há ainda uma casa sobre a linha verde de erva macia. É castanha, da cor da terra que não se vê da janela. Nasceu dos trabalhos da mão de ambos os poetas, a árvore e o jovem que há pouco, debaixo dela, se deitava com a erva. Cada uma das pedras que a erguem na paisagem, diante dos nossos olhos, é um som cristalino e puro. É nela que o poeta regista os acordes do solene acto de amor que vive com a natureza. É nela que se concentra o vivo lume dos cíclicos exercícios da sua mão, que colhe os frutos da árvore, e da sua boca, que canta o seu sabor.
Circulam por entre as linhas desta mínima visão, algumas das mais ternas razões que poderemos ter, neste Inverno, para ler a poesia de Eugénio de Andrade. Porque dentro de casa está o fogo, o vivo lume que nos aquece as mãos. Entremos.
José Pedro Ferreira,
in Eugénio de Andrade – Textos e Pretextos, Inverno 2004, nº 5

quarta-feira, 18 de novembro de 2009

Sonidos de calle

Sevilha, 2009 © Adelina Silva
Ainda tenho em mente a imagem magra, franzina, uma bengala na mão, quem sabe se por vaidade ou se por vontade...
Ainda tenho em mente, a figura esbelta, rebelde...
passando na rua sem saída onde habitávamos,
nas noites de solidão.
Ainda tenho em mente
o sorriso cordial, sempre presente, quando passavas
p'lo grupo de miúdos de guitarra na mão e canções idealistas
nessas noites de Verão.
Ainda tenho em mente
"lá vai o Mário..." e os "boas noites!"
e o sorriso sempre presente
Ainda tenho em mente
sempre presente
a figura magra, franzina,
voz calma e serena
quando conversávamos, por momentos,
antes de ires procurar a tua inspiração
nessas noites de Verão.
Mário Cesariny
Feliz aniversário Mário

sábado, 14 de novembro de 2009

Maluda

Sevilha, 2009 © Adelina Silva

Esta janela já não tem enredos,
ninguém por ela espreita, ninguém espera
vê-la semicerrar, semiabrir
o olhoblíquo do ciúme;

nem por ela passarão as trajectórias
do suicida e do escalador.
Romeu morreu e a doce expectação
de Julieta é comprimido sono.

Sequer uns braços nus de janeleira,
hasteada brancura, nela podem
demorar o gozo dum voyeur,
que esta janela já não serve para...

Esta janela é uma finta, é uma jogada
no xadrez de quem a pinta e assina.
Alexandre O'Neill

quarta-feira, 11 de novembro de 2009

Vazio

Porto, 2009 © Adelina Silva
Para além de outro oceano
(...)
Uma sala grande e vazia é uma alma silenciosa
E as correntes de ar que levantam pó são os pensamentos
(...)
Fernando Pessoa


domingo, 8 de novembro de 2009

Manual de Boas Maneiras

Porto, 2009 © Adelina Silva

A maneira moderna de cuspir — ou melhor, de não cuspir —também se define vagarosamente. Alguns manuais da Idade Média instam as crianças a não cuspirem na mesa, à mesa nem na bacia. Erasmo, depois de afirmar que “é mal educado engolir a saliva”, adverte que devemos afastar-nos dos outros para expeli-la no chão e, se isto não for possível, usar um lenço. Com Giovanni della Casa, a proposta é repressiva: o homem deve evitar cuspir o quanto for possível: bom mesmo seria fazer como certos povos que não cospem jamais. Porém, se não o conseguirmos, pelo menos podemos reduzir o número das nossas cusparadas (1558). Em 1672, Courtin retorna ao exemplo de Erasmo para dizer que não é admissível cuspir no chão — nem bocejar diante dos outros.

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

Desespero

Porto, 2009 © Adelina Silva

Há uma ligação muito estreita entre a adoração da acção e o uso do homem como meio de atingir fins que não são o homem. Como há uma ligação aproximada entre este desespero e a acção, entre a razão e a acção. A proeminência dos valores da acção sobre os da contemplação indica, sobretudo, que o homem abandonou totalmente a busca duma ideia aprazível do homem e o desejo de o colocar como fim. E que na impossibilidade de agir segundo um fim, ou de agir para ser homem, ele decide agir de qualquer maneira, apenas para agir.
O homem de acção é um desesperado que procura preencher o vazio do seu próprio desespero com actos ligados mecanicamente uns aos outros e compreendidos entre um ponto de início e um ponto de conclusão, ambos gratuitos e convencionais.

Alberto Moravia, in "O Homem Como Fim”

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

Menina à janela

Porto, 2009 © Adelina Silva


Preciso dos outros ( quem de mim precisa?)
Nos teus olhos vejo uma promessa nua.
A esperança está viva, a vida está certa:
guarda a minha mão, guardarei a tua.
Alexandre O'Neill

segunda-feira, 2 de novembro de 2009

Perenidade

Porto, 2009 © Adelina Silva
O que mais me intriga e dói na nossa morte, como vemos na dos outros, é que nada se perturba com ela na vida normal do mundo. Mesmo que sejas uma personagem histórica, tudo entra de novo na rotina como se nem tivesses existido. O que mais podem fazer-te é tomar nota do acontecimento e recomeçar. Quando morre um teu amigo ou conhecido, a vida continua natural como se quem existisse para morrer fosses só tu. Porque tudo converge para ti, em quem tudo existe, e assim te inquieta a certeza de que o universo morrerá contigo. Mas não morre. Repara no que acontece com a morte dos outros e ficas a saber que o universo se está nas tintas para que morras ou não. E isso é que é incompreensível - morrer tudo com a tua morte e tudo ficar perfeitamente na mesma. Tudo isto tem significado para o teu presente.

Vergílio Ferreira, in "Escrever"