quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

Dá-me a Tua Mão


Porto, 2011© Adelina Silva

Dá-me a tua mão: Vou agora te contar como entrei no inexpressivo que sempre foi a minha busca cega e secreta. De como entrei naquilo que existe entre o número um e o número dois, de como vi a linha de mistério e fogo, e que é linha sub-reptícia. Entre duas notas de música existe uma nota, entre dois fatos existe um fato, entre dois grãos de areia por mais juntos que estejam existe um intervalo de espaço, existe um sentir que é entre o sentir - nos interstícios da matéria primordial está a linha de mistério e fogo que é a respiração do mundo, e a respiração contínua do mundo é aquilo que ouvimos e chamamos de silêncio.

Clarice Lispector


segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Feliz Natal!!

Feliz Natal a TODOS!!!
Desejo-vos muitas Fotos nos presentes!!!
Toca a desembrulhá-los!!!

quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Coração Acordeão


Sevilha, 2009 © Adelina Silva

Não o amor não tem asas
se tem asas são as mãos
que se enlaçam para a festa
maravilhosa do corpo
e entre elas o coração
coração acordeão

Alexandre O'Neill, in "Coração Acordeão"


domingo, 27 de novembro de 2011

Já não é possível


Lisboa, 2011 © Adelina Silva

Já tudo é tudo. A perfeição dos
deuses digere o próprio estômago.
O rio da morte corre para a nascente.
O que é feito das palavras senão as palavras?

O que é feito de nós senão
as palavras que nos fazem
Todas as coisas são perfeitas de
Nós até ao infinito, somos pois divinos.

Já não é possível dizer mais nada
mas também não é possível ficar calado.
Eis o verdadeiro rosto do poema.
Assim seja feito a mais e a menos.


Manuel António Pina, in "ainda não é o fim, nem o princípio do mundo, calma, é apenas um pouco tarde”


quinta-feira, 24 de novembro de 2011

O Velho Colono


Porto, 2010© Adelina Silva

Sentado no banco cinzento
entre as alamedas sombreadas do parque.
Ali sentado só, àquela hora da tardinha,
ele e o tempo. O passado certamente,
que o futuro causa arrepios de inquietação.
Pois se tem o ar de ser já tão curto,
o futuro. Sós, ele e o passado,
os dois ali sentados no banco de cimento.

(...)

Em redor há todo o mundo e a vida.
Ali está ele, ele e o passado,
sentados os dois no banco de frio cimento.
Ele a sombra e a névoa do olhar.
Ele, a bronquite e o latejar cansado
das artérias. Em volta os beijos húmidos,
as frescas gargalhadas, tintas de Outono
próximo na folhagem e o tempo.

O tempo que cada qual, a seu modo,
vai aproveitando.

Rui Knofli


terça-feira, 22 de novembro de 2011

Versos soltos no Mar


Póvoa de Varzim, 2011© Adelina Silva

36
Inclinei-me para ver o mar. E vi apenas
uma mulher chorando
contra o quarto minguante de uma lua crescente.

37
Mar, andei à tua procura
esse imortal sorriso...
porém não o encontrei.


Vinicius de Moraes,in "Poesia Completa e Prosa"


sexta-feira, 18 de novembro de 2011

Como uma vaca veio residir com os orelhudos


Burgos, 2009© Adelina Silva

Um dia numa floresta um coelho matou um homem. Uma vaca observava esperando que o homem se levantasse. Um insecto rastejou na cara do homem. Uma vaca observava esperando que o homem se levantasse. Uma vaca saltou uma sebe para ver mais de perto como um coelho arruma um homem. Um coelho ataca uma vaca pensando que a vaca veio ajudar o homem. O coelho domina a vaca e arrasta a vaca para a sua toca.
Quando a vaca desperta a vaca pensa, eu queria estar ao cimo da terra indo com o homem para o meu estábulo.

Russel Edson ,in "O Túnel"


quarta-feira, 16 de novembro de 2011

Falaram-me...


Guimarães, 2010 © Adelina Silva

Falaram-me em homens, em humanidade,
Mas eu nunca vi homens nem vi humanidade.
Vi vários homens assombrosamente diferentes entre si,
Cada um separado do outro por um espaço sem homens.


Alberto Caeiro,in "Fragmentos"


sexta-feira, 11 de novembro de 2011

Nascemos para ter asas


Porto, 2011 © Adelina Silva

Nós nascemos para ter asas, meus amigos.
Não se esqueçam de escrever por dentro do peito: nós nascemos para ter asas.
 No entanto, em épocas remotas, vieram com dedos pesados de ferrugem para gastar as nossas asas como se gastam tostões.
 Cortaram-nos as asas para que fôssemos apenas operários obedientes, estudantes atenciosos, leitores ingénuos de notícias sensacionais, gente pouca, pouca e seca.
 Apesar disso, sábios, estudiosos do arco-íris e de coisas transparentes, afirmam que as asas dos homens crescem mesmo depois de cortadas, e, novamente cortadas, de novo voltam a ser.
 Aceitemos esta hipótese, apesar de não termos dela qualquer confirmação prática.
 Por hoje é tudo. Abram as janelas. Podem sair.

José Fanha, in "Cartas de Marear"


quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Ilumina-se a Igreja


Lisboa, 2011 © Adelina Silva

Ilumina-se a igreja por dentro da chuva deste dia,
E cada vela que se acende é mais chuva a bater na vidraça...

Alegra-me ouvir a chuva porque ela é o templo estar aceso,
E as vidraças da igreja vistas de fora são o som da chuva ouvido por dentro ...

O esplendor do altar-mor é o eu não poder quase ver os montes
Através da chuva que é ouro tão solene na toalha do altar...

Soa o canto do coro, latino e vento a sacudir-me a vidraça
E sente-se chiar a água no fato de haver coro...

A missa é um automóvel que passa
Através dos fiéis que se ajoelham em hoje ser um dia triste...
Súbito vento sacode em esplendor maior
A festa da catedral e o ruído da chuva absorve tudo
Até só se ouvir a voz do padre água perder-se ao longe
Com o som de rodas de automóvel...

E apagam-se as luzes da igreja
Na chuva que cessa ...

Fernando Pessoa, in "Cancioneiro"


segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Vistas assim as coisas


Salamanca, 2010 © Adelina Silva

(...)
E vistas assim as coisas fragmentariamente é certo
e a custo na imensidão da desordem
a que terão de ser constantemente arrancadas
— são da máxima importância as Velhas Concepções
pois
a cada momento corremos grandes riscos
desconcertantes e de sinistra estranheza.

Resulta isto dum olhar rápido sobre a cidade desconhecida. Mais
E abstraindo dos versos que neste poema se referem ao mundo humano
vemos que ninguém até hoje se apossou do homem
como frágil véu que nos separa vedados e proibidos.

António Maria Lisboa


sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Out of the box


Zaragoza, 2011 © Adelina Silva

Este mundo não presta, venha outro.
Já por tempo de mais aqui andamos
A fingir de razões suficientes.
Sejamos cães do cão: sabemos tudo
De morder os mais fracos, se mandamos,
E de lamber as mãos, se dependentes.


José Saramago, in "Os Poemas Possíveis"


terça-feira, 1 de novembro de 2011

Redoma


Magaluf, 2011 © Adelina Silva

(…)
Vem-me a angústia
Do limite que nos antagoniza. Vejo a redoma de ar
Que te circunda - o espaço
Que separa os nossos tempos. Tua forma
É outra: bela demais, talvez, para poder
Ser totalmente minha. Tua respiração
Obedece a um ritmo diverso. Tu és mulher.
Tu tens seios, lágrimas e pétalas. À tua volta
O ar se faz aroma. Fora de mim
És pura imagem; em mim
És como um pássaro que eu subjugo, como um pão
Que eu mastigo, como uma secreta fonte entreaberta
Em que bebo, como um resto de nuvem
Sobre que me repouso. Mas nada
Consegue arrancar-te à tua obstinação
Em ser, fora de mim - e eu sofro, amada
De não me seres mais. Mas tudo é nada.
(…)

Vinicius de Moraes, in "Poesia Completa e Prosa"


domingo, 30 de outubro de 2011

Procuro-te onde não estás


Póvoa de Varzim, 2009 © Adelina Silva

(...)
Foste embora? Procuraste
O amor de algum outro passo
Que em vez de seguir-te sempre
Andasse sempre ao teu lado?

Eu ando agora sozinho
Na praia longa e deserta
Eu ando agora sozinho
Por que fugiste? Por quê?
Ao meu passo solitário
Triste e incerto como nunca
Só responde a voz das ondas
Que se esfacelam na areia.

Vinicius de Moraes, in "Poesia Completa e Prosa"


sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Rêve Oublié


Póvoa de Varzim, 2010 © Adelina Silva

Neste meu hábito surpreendente de te trazer de costas
neste meu desejo irrefletido de te possuir num trampolim
nesta minha mania de te dar o que tu gostas
e depois esquecer-me irremediavelmente de ti
(...)
Contar a vida pelos dedos e perdê-los
contar um a um os teus cabelos e seguir a estrada
contar as ondas do mar e descobrir-lhes o brilho
e depois contar um a um os teus dedos de fada

Abrir-se a janela para entrarem estrelas
abrir-se a luz para entrarem olhos
abrir-se o tecto para cair um garfo no centro da sala
e depois ruidosa uma dentadura velha
E no CIMO disto tudo uma montanha de ouro

E no FIM disto tudo um Azul-de-Prata.

António Maria Lisboa


segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Paisagem


Vale de Pisão, 2011 © Adelina Silva

Subi a alta colina
Para encontrar a tarde
Entre os rios cativos

A sombra sepultava o silêncio.



Assim entrei no pensamento

Da morte minha amiga

Ao pé da grande montanha

Do outro lado do poente.



Como tudo nesse momento

Me pareceu plácido e sem memória

Foi quando de repente uma menina

De vermelho surgiu no vale correndo, correndo…


Vinicius de Moraes, in "Antologia Poética e Prosa"


sexta-feira, 21 de outubro de 2011

Mulheres à Beira-Mar


Póvoa de Varzim, 2011 © Adelina Silva

Confundido os seus cabelos com os cabelos
do vento, têm o corpo feliz de ser tão seu e
tão denso em plena liberdade.

Lançam os braços pela praia fora e a brancura
dos seus pulsos penetra nas espumas.

Passam aves de asas agudas e a curva dos seus
olhos prolonga o interminável rastro no céu
branco.

Com a boca colada ao horizonte aspiram longa-
mente a virgindade de um mundo que nasceu.

O extremo dos seus dedos toca o cimo de
delícia e vertigem onde o ar acaba e começa.

E aos seus ombros cola-se uma alga, feliz de
ser tão verde.

Sophia de Mello Breyner Andresen


sábado, 15 de outubro de 2011

O Novo Homem


Burgos, 2010 © Adelina Silva

(...)
Perdão: acabou-se
a época dos pais.
Quem comia doce
já não come mais.
Não chame de filho
este ser diverso
que pisa o ladrilho
de outro universo.
Sua independência
é total: sem marca
de família, vence
a lei do patriarca.
Liberto da herança
de sangue ou de afeto,
desconhece a aliança
de avô com seu neto.
Pai: macromolécula;
mãe: tubo de ensaio,
e, per omnia secula,
livre, papagaio, sem memória e sexo,
feliz, por que não?
pois rompeu o nexo
da velha Criação,
eis que o homem feito
em laboratório
sem qualquer defeito
como no antigório,
acabou com o Homem.
Bem feito.

Carlos Drummond de Andrade, excerto do poema "O Novo Homem"


quarta-feira, 12 de outubro de 2011

Rosa dos Mares


Lisboa, 2011 © Adelina Silva

Tinha o tamanho da praia
o corpo era de areia.
Ele próprio era o início
do mar que o continuava.
Destino de água salgada
principiado na veia.

E quando as mãos se estenderam
a todo o seu comprimento
e quando os olhos desceram
a toda a sua fundura
teve o sinal que anuncia
o sonho da criatura.

Largou o sonho nos barcos
que dos seus dedos partiam
que dos seus dedos paisagens
países antecediam.

E quando o seu corpo se ergueu
Voltado para o desengano
só ficou tranquilidade
na linha daquele além.
Guardada na claridade
do olhar que a retém..


Natália Correia


domingo, 9 de outubro de 2011

Versos de Orgulho


Porto, 2011 © Adelina Silva

(...)
O mundo! O que é o mundo, ó meu amor?!
O jardim dos meus versos todo em flor,
A seara dos teus beijos, pão bendito,

Meus êxtases, meus sonhos, meus cansaços...
São os teus braços dentro dos meus braços:
Via Láctea fechando o Infinito!...


Florbela Espanca, in "Charneca em Flor"


quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Fifth Avenue


Londres, 2011 © Adelina Silva

Isto de um homem se sentir só, à saída
do trabalho, do cinema, ao ir pra casa...

Saber que ninguém espera que cheguemos,
para alegrar-se ao ver-nos, ou rechaçar-nos,
torna inimiga, deserta
e inóspita a mais povoada rua.

Os amigos... Contam-me problemas
e com a pressa desandam. E uma pessoa fica
de novo e outra vez sozinha, constrangida
a enroscar-se no seu ego e no seu tédio.

Com que vazio deparamos em nós próprios
quando buscamos o nosso eu interno.
Que ser desagradável se contempla
examinando o nosso próprio ser.

E aqui, entre tanta gente, na cidade,
sentimos que nada interessamos a ninguém.

J. M. Fonollosa, in "New York - Cidade do Homem"


domingo, 2 de outubro de 2011

Escuto sem te ouvir


Magaluf, 2007 © Adelina Silva

Falas de civilização, e de não dever ser,
Ou de não dever ser assim.
Dizes que todos sofrem, ou a maioria de todos,
Com as cousas humanas postas desta maneira.
Dizes que se fossem diferentes, sofreriam menos.
Dizes que se fossem como tu queres, seria melhor.
Escuto sem te ouvir.
Para que te quereria eu ouvir?
Ouvindo-te nada ficaria sabendo.
Se as cousas fossem diferentes, seriam diferentes: eis tudo.
Se as cousas fossem como tu queres, seriam só como tu queres.
Ai de ti e de todos que levam a vida
A querer inventar a máquina de fazer felicidade!

Alberto Caeiro, in "Poemas Inconjuntos"


quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Pescaria


Apúlia, 2011 © Adelina Silva

Cesto de peixes no chão.
Cheio de peixes, o mar.
Cheiro de peixe pelo ar.
E peixes no chão.

Chora a espuma pela areia,
na maré cheia.

As mãos do mar vêm e vão,
as mãos do mar pela areia
onde os peixes estão.

As mãos do mar vêm e vão,
em vão.
Não chegarão
aos peixes do chão.

Por isso chora, na areia,
a espuma da maré cheia.

Cecília Meireles, in "Ou isto ou aquilo"


sábado, 24 de setembro de 2011

Não sei por onde vou


Londres, 2011 © Adelina Silva

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
- Sei que não vou por aí!

José Régio, extrato "Cântico Negro"


terça-feira, 20 de setembro de 2011

Inesperada ausência


Atapuerca, 2010 © Adelina Silva

Foi no dia em que a tua inesperada ausência abriu feridas no pulso das horas. Esperei até ao anoitecer com o lenço amarrotado. Tínhamos combinado viajar sem rumo e sem bússola. Não havia cidades nem portos assinalados na cartografia das mãos.

Alberto Serra, in "O Aparo do Demónio"


sexta-feira, 16 de setembro de 2011

Fado da Sina


Póvoa de Varzim, 2011 © Adelina Silva

Reza-te a sina nas linhas traçadas na palma da mão,
Que duas vidas se encontram cruzadas no teu coração.
Sinal de amargura, de dor e tortura, de esperança perdida,
Destino marcado de amor destroçado na linha da vida.

E mais se reza na linha do amor que terá de sofrer
O desencanto ou leve dispor de uma outra mulher.
Já que a má sorte assim quis, a tua sina te diz...
Que até morrer, terás de ser, sempre infeliz.

Amadeu do Vale, extrato da letra do "Fado da Sina"


terça-feira, 13 de setembro de 2011

A festa


Oviedo, 2008 © Adelina Silva

Escuto na palavra a festa do silêncio.
Tudo está no seu sítio. As aparências apagaram-se.
As coisas vacilam tão próximas de si mesmas.
Concentram-se, dilatam-se as ondas silenciosas.
É o vazio ou o cimo? É um pomar de espuma.

Uma criança brinca nas dunas, o tempo acaricia,
o ar prolonga. A brancura é o caminho.
Surpresa e não surpresa: a simples respiração.
Relações, variações, nada mais. Nada se cria.
Vamos e vimos. Algo inunda, incendeia, recomeça.

Nada é inacessível no silêncio ou no poema.
É aqui a abóbada transparente, o vento principia.
No centro do dia há uma fonte de água clara.
Se digo árvore a árvore em mim respira.
Vivo na delícia nua da inocência aberta.
António Ramos Rosa, in "Volante Verde"

domingo, 11 de setembro de 2011

Olhos de sol


Póvoa de Varzim, 2011 © Adelina Silva

O mocho traz nos olhos,
escondido, um sol. Com ele,
incendeia a noite.
Albano Martins

quinta-feira, 8 de setembro de 2011

Junto à Serra do Pilar


Porto, 2010 © Adelina Silva

Quem vem e atravessa o rio,
junto à Serra do Pilar,
vê um velho casario
que se estende até ao mar.
(...)
Carlos Tê

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

Quarto Crescente


2011 © Adelina Silva

Porque vejamos: uma lua destas
já nem lua é. A lua quer-se grande,
leitosa, apontável às crianças:
olha o homem da lua, os olhos, a

vassoura. Mas uma lua destas,
desfazendo-se em sombras, um ar
de quem passou o dia em claro
já nem lua é. Que não exija então

o impossível, que não se finja
a sério a pedir versos e algum olhar:
o poeta não usa telescópio,
nem se vai acordar uma criança
por gomos de luar

Ana Luísa Amaral

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

Quem abre a porta ao gato?


Monção, 2011 © Adelina Silva

Quem há-de abrir a porta ao gato
...quando eu morrer?

Sempre que pode
foge prá rua
cheira o passeio
e volta para trás,
mas ao defrontar-se com a porta fechada
(pobre do gato!)
mia com raiva
desesperada.

Deixo-o sofrer
que o sofrimento tem sua paga,
e ele bem sabe.

Quando abro a porta corre para mim
como acorre a mulher aos braços do amante.
Pego-lhe ao colo e acaricio-o
num gesto lento,
vagarosamente,
do alto da cabeça até ao fim da cauda.
Ele olha-me e sorri, com os bigodes eróticos,
olhos semicerrados, em êxtase,
ronronando.

Repito a festa,
vagarosamente,
do alto da cabeça até ao fim da cauda.
Ele aperta as maxilas,
cerra os olhos,
abre as narinas,
e rosna,
rosna, deliquescente,
abraça-me
e adormece.

Eu não tenho gato, mas se o tivesse
quem lhe abriria a porta quando eu morresse?

António Gedeão

segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Loira ou Morena?


Porto, 2010 © Adelina Silva

— Na verdade, não há muitas espécies de cerveja, no mundo das idéias. Mas os rótulos perturbam. Uns aparecem com mulher nua, insinuando que o gosto é mais capitoso. Bem, até agora não vi rótulo de cerveja mostrando mulher com tudo de fora, mas deve haver. Mulher se oferecendo está em tudo que é produto industrial, por que não estaria nos sistemas de organização social, como bonificação?

— Você está divagando.

— Estou. Divagar é uma forma de transformar pensamentos em nuvem ou em fumaça de cigarro, fazendo com que eles circulem por aí.

— Ou se percam.

— E se percam. Exatamente. 0 importante não é beber cerveja, é ter a ilusão de que nossa cerveja é a única que presta.

Carlos Drummond de Andrade, in "De notícias & não notícias faz-se a crônica"


domingo, 28 de agosto de 2011

Se a janela se abrisse...


Monção, 2011 © Adelina Silva


Não basta abrir a janela
Para ver os campos e o rio.
Não é bastante não ser cego
Para ver as árvores e as flores.
É preciso também não ter filosofia nenhuma.
Com filosofia não há árvores: há idéias apenas.
Há só cada um de nós, como uma cave.
Há só uma janela fechada, e todo o mundo lá fora;
E um sonho do que se poderia ver se a janela se abrisse,
Que nunca é o que se vê quando se abre a janela.
Alberto Caeiro, in "Poemas Inconjuntos"

quinta-feira, 25 de agosto de 2011

Vou de Comboio...


Póvoa de Varzim, 2010 © Adelina Silva


Vou de comboio...
Vou
Mecanizado e duro como sou
Neste dia;
- E mesmo assim tu vens, tu me visitas!
Tu ranges nestes ferros e palpitas
Dentro de mim, Poesia!
Miguel Torga, in "Antologia Poética"

quarta-feira, 24 de agosto de 2011

Reacção e|m|n|cadeia


Gondomar, 2010 © Adelina Silva

O cafajeste joga bilhar com a ilusão alheia.

Marcelo Soriano, via Twitter (@euHOJE)

segunda-feira, 22 de agosto de 2011

Uma eterna criança


Magaluf, 2011 © Adelina Silva

A Criança Eterna acompanha-me sempre.
A direcção do meu olhar é o seu dedo apontando.
O meu ouvido atento alegremente a todos os sons
São as cócegas que ele me faz, brincando, nas orelhas.
Alberto Caeiro

sexta-feira, 19 de agosto de 2011

O espanto dos idiotas


Magaluf, 2011 © Adelina Silva

Retirem da minha frente todos os que olham com o espanto dos idiotas. A minha mais grata paisagem são os meus próprios olhos, mesmo quando olho as coisas.
- Uma vez por todas não escrevo para os que não sabem ler.

António Maria Lisboa, in "Poesia"


terça-feira, 16 de agosto de 2011

Sou uma pequena folha


Andorra, 2011 © Adelina Silva

Geometria que respira errante e ritmada,
varandas verdes, direcções de primavera,
ramos em que se regressa ao espaço azul,
curvas vagarosas, pulsações de uma ordem
composta pelo vento em sinuosas palmas.

Um murmúrio de omissões, um cântico do ócio.
Eu vou contigo, voz silenciosa, voz serena.
Sou uma pequena folha na felicidade do ar.
Durmo desperto, sigo estes meandros volúveis.
É aqui, é aqui que se renova a luz.

António Ramos Rosa, in "Volante Verde"



sexta-feira, 12 de agosto de 2011

Sonhos Perdidos


Magaluff, 2011 © Adelina Silva

E tu, derradeira geração perdida,
confia-me os teus sonhos de pureza
e cai de borco, que eu chamo-te ao meio-dia...
Alexandre O'Neill


quarta-feira, 10 de agosto de 2011

Lugares


Palma Nova, 2011 © Adelina Silva

é tão fácil amar lugares
que não existem
Alice Vieira


segunda-feira, 25 de julho de 2011

E toda aquela infância...


Póvoa de Varzim, 2010 © Adelina Silva

Quando as crianças brincam
E eu as oiço brincar,
Qualquer coisa em minha alma
Começa a se alegrar.

E toda aquela infância
Que não tive me vem,
Numa onda de alegria
Que não foi de ninguém.

Se quem fui é enigma,
E quem serei visão,
Quem sou ao menos sinta
Isto no coração.

Fernando Pessoa, in "Cancioneiro"


sábado, 23 de julho de 2011

Apenas dois


Póvoa de Varzim, 2010 © Adelina Silva

Dois...
Apenas dois.
Dois seres...
Dois objectos patéticos.
Cursos paralelos
Frente a frente...
...Sempre...
...A se olharem...
Pensar talvez:
Paralelos que se encontram no infinito...
No entanto sós por enquanto.
Eternamente dois apenas.

Pablo Neruda




quarta-feira, 20 de julho de 2011

Nostalgia do Presente


Póvoa de Varzim, 2010 © Adelina Silva

Naquele preciso momento o homem disse:
«O que eu daria pela felicidade
de estar ao teu lado na Islândia
sob o grande dia imóvel
e de repartir o agora
como se reparte a música
ou o sabor de um fruto.»
Naquele preciso momento
o homem estava junto dela na Islândia.

Jorge Luis Borges, in"A Cifra"


segunda-feira, 18 de julho de 2011

Aquela Nuvem


Porto, 2010 © Adelina Silva

- É tão bom ser nuvem,
ter um corpo leve,
e passar, passar.

(...)

- Para que te serve
ser nuvem, se não
me podes levar?

- Serve para te ver.
E passar, passar.

Eugénio de Andrade


sábado, 16 de julho de 2011

Flutuo


Póvoa de Varzim, 2011 © Adelina Silva

De que céu caído,
oh insólito,
imóvel solitário na onda do tempo?
És a duração,
o tempo que amadurece
num instante enorme, diáfano:
flecha no ar,
branco embelezado
e espaço já sem memória de flecha.
Dia feito de tempo e de vazio:
desabitas-me, apagas
meu nome e o que sou,
enchendo-me de ti: luz, nada.

E flutuo, já sem mim, pura existência.

Octavio Paz, in"Liberdade sob Palavra"


quarta-feira, 13 de julho de 2011

A aranha


Póvoa de Varzim, 2009 © Adelina Silva

A aranha do meu destino
Faz teias de eu não pensar.
Não soube o que era em menino,
Sou adulto sem o achar.
É que a teia, de espalhada
Apanhou-me o querer ir...
Sou uma vida baloiçada
Na consciência de existir.
A aranha da minha sorte
Faz teia de muro a muro...
Sou presa do meu suporte.

Fernando Pessoa





domingo, 10 de julho de 2011

O Carro Eléctrico


Porto, 2010 © Adelina Silva

(...) Era o sal das histórias picantes, a doçura das afeições da gente comum, o vinagre do azedume dos que sofriam a sua ronceirice, os seus atrasos e incómodos, a poesia de quem se deleitava com as oportunidades do romance de algumas viagens. (...)

Hélder Pacheco, in"O Carro Eléctrico no Porto"


sexta-feira, 8 de julho de 2011

A Rede (social)


Londres, 2011 © Adelina Silva

A vida, as suas perdas e os seus ganhos, a sua
mais que perfeita imprecisão, os dias que contam
quando não se espera, o atraso na preocupação
dos teus olhos, e as nuvens que caíram
mais depressa, nessa tarde, o círculo das relações
a abrir-se para dentro e para fora
dos sentidos que nada têm a ver com círculos,
quadrados, rectângulos, nas linhas
rectas e paralelas que se cruzam com as
linhas da mão;
(…)

Nuno Júdice, in"Teoria Geral do Sentimento"


segunda-feira, 4 de julho de 2011

Sou uma pausa


Lisboa, 2011 © Adelina Silva

A luz tece no muro indiferente
um espectral teatro de reflexos.

Bem no centro de um olho me descubro:
não me fita, me fito em seu olhar.

O instante se dissipa. Sem mover-me,
eu me quedo e me vou: sou uma pausa.

Octávio Paz


sábado, 2 de julho de 2011

... e as coisas que não falam...


Burgos, 2010 © Adelina Silva

Amo o espaço e o lugar, e as coisas que não falam.
O estar ali, o ser de certo modo,
o saber-se como é, onde é que está e como,
o aguardar sem pressa, e atender-nos
da forma necessária.

Serenas em si mesmas, sempre iguais a si próprias,
esperam as coisas que o desespero as busque.

António Gedeão


quarta-feira, 29 de junho de 2011

S. Pedro Poveiro


© Adelina Silva

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© Adelina Silva


Local: Bairro Norte, Póvoa de Varzim
Dia: Noite de S. Pedro, 2011