sábado, 31 de maio de 2014

Chorai arcadas

Merida, 2014 © Adelina Silva

Chorai arcadas
Do violoncelo!
Convulsionadas,
Pontes aladas
De pesadelo...
De que esvoaçam,
Brancos, os arcos...
(...)
Dos balaústres!
Urnas quebradas!
Blocos de gelo...
- Chorai arcadas,
Despedaçadas,
Do violoncelo.

Camilo Pessanha, in "Clepsidra"


quinta-feira, 15 de maio de 2014

A Fábrica

Porto, 2014 © Adelina Silva

Oh, a poesia de tudo o que é geométrico 
e perfeito, 
a beleza nova dos maquinismos, 
a força secreta das peças 
sob o contacto liso e frio dos metais, 
a segura confiança 

do saber-se que é assim e assim exactamente, 
sem lugar a enganos, 
tudo matemático e harmónico, 
sem nenhum imprevisto, sem nenhuma aventura, 
como na cabeça do engenheiro. 
(...)

Joaquim Namorado, in "Antologia Poética"





sábado, 3 de maio de 2014

Carta à minha Filha

Porto, 2011 © Adelina Silva

Lembras-te de dizer que a vida era uma fila? 
Eras pequena e o cabelo mais claro, 
mas os olhos iguais. Na metáfora dada 
pela infância, perguntavas do espanto 
da morte e do nascer, e de quem se seguia 
e porque se seguia, ou da total ausência 
de razão nessa cadeia em sonho de novelo. 

Hoje, nesta noite tão quente rompendo-se 
de junho, o teu cabelo claro mais escuro, 
queria contar-te que a vida é também isso: 
uma fila no espaço, uma fila no tempo 
e que o teu tempo ao meu se seguirá. 

Num estilo que gostava, esse de um homem 
que um dia lembrou Goya numa carta a seus 
filhos, queria dizer-te que a vida é também 
isto: uma espingarda às vezes carregada 
(como dizia uma mulher sozinha, mas grande 
de jardim). Mostrar-te leite-creme, deixar-te 
testamentos, falar-te de tigelas - é sempre 
olhar-te amor. Mas é também desordenar-te à 
vida, entrincheirar-te, e a mim, em fila descontínua 
de mentiras, em carinho de verso. 
(...)

Ana Luísa Amaral, in  "Imagias (Um pouco só de Goya: Carta a minha Filha)"