quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

Rifa-se

Barcelona, 2008 ©Adelina Silva

Rifa-se um coração quase novo. Um coração idealista. Um coração como poucos. Rifa-se um coração que, na realidade, está um pouco usado, meio calejado, muito machucado e que teima em alimentar sonhos e cultivar ilusões. Um coração inconsequente e precipitado, que diante de um sorriso mais malicioso já está apaixonado. Rifa-se um coração que nunca aprende. Um coração insensato que comanda o racional sendo louco o suficiente para se apaixonar. Um furioso suicida que vive procurando relações e emoções verdadeiras. Rifa-se um coração que insiste em cometer sempre os mesmos erros. Esse coração que erra, briga, se expõe. Perde o juízo por completo em nome de paixões. Sai do sério e, às vezes, revê suas posições, arrependido de palavras e gestos. Rifa-se um coração tão inocente que se mostra sem armaduras e deixa louco o seu usuário. Rifa-se um coração, ou mesmo troca-se por outro, que tenha um pouco mais de juízo.

Clarice Lispector

domingo, 23 de janeiro de 2011

A minha Cidade

Porto, 2010 © Adelina Silva

Uma cidade pode ser
apenas um rio, uma torre, uma rua
com varandas de sal e gerânios

de espuma.
(…)
Uma cidade pode ser
um coração,
um punho.

Albano Martins, in "Castália e Outros Poemas"

sábado, 15 de janeiro de 2011

A Porta

Guimarães, 2009 © Adelina Silva

Eu sou feita de madeira
Madeira, matéria morta
Mas não há coisa no mundo
Mais viva do que uma porta.

Eu abro devagarinho
Pra passar o menininho
Eu abro bem com cuidado
Pra passar o namorado
Eu abro bem prazenteira
Pra passar a cozinheira
Eu abro de supetão
Pra passar o capitão.

Só não abro pra essa gente
Que diz (a mim bem me importa...)
Que se uma pessoa é burra
É burra como uma porta.

Eu sou muito inteligente!
Eu fecho a frente da casa
Fecho a frente do quartel
Fecho tudo nesse mundo

Só vivo aberta no céu!

Vinicius de Moraes, in "Poesia Completa e Prosa"

terça-feira, 11 de janeiro de 2011

Estação

Porto, 2010 © Adelina Silva

Esperar ou vir esperar querer ou vir querer-te
vou perdendo a noção desta subtileza.
Aqui chegado até eu venho ver se me apareço
e o fato com que virei preocupa-me, pois chove miudinho

Muita vez vim esperar-te e não houve chegada
De outras, esperei-me eu e não apareci
Embora bem procurado entre os mais que passavam.
Se algum de nós vier hoje é já bastante
como comboio e como subtileza

Que dê o nome e espere. Talvez apareça.

Mário Cesariny, in “Pena Capital”

terça-feira, 4 de janeiro de 2011

Composição da minha Angústia

Póvoa de Varzim, 2010 © Adelina Silva


Encontro-me descrito (em parte) em vários romances como protagonista de vários enredos; mas o essencial da minha vida, como da minha alma, é não ser nunca protagonista. (…) O cais, a tarde, a maresia entram todos, e entram juntos, na composição da minha angústia.

Fernando Pessoa, in “Do Livro do Desassossego”