segunda-feira, 29 de junho de 2009

Reencontro

Madrid, 2009 © Adelina Silva

Estou nervoso, é a primeira vez que a revejo. Sem que venha a propósito, conto segredos, faço confidências de que logo me arrependo. A distância física é também uma distância, um afastamento interior. Falo de mim como quem fala de uma outra pessoa que julga conhecer bem, ou pelo menos, isso presume. Não creio que G. tenha acreditado ou mesmo entendido o que lhe quis dizer. Por isso, a partir de certa altura, os segredos transformam-se em pequenas mentiras, em efabulações. Fizemos o que é mais habitual duas pessoas fazerem, preenchemos todo o tempo com palavras, enquanto os corpos de dois animais, frente a frente, se alimentavam.

Pedro Paixão

sábado, 27 de junho de 2009

Incerteza

Madrid, 2009 © Adelina Silva


É o lado indomável da vida que nos transporta. O não saber bem o que se espera, o não poder saber o que nos espera, a expectativa confundindo o desejo. Esperar que aconteça alguma coisa de qualquer maneira. Ter confiança em reconhecer isso que se procura, quando isso for encontrado. Dar atenção aos acasos que mudam tudo.
Pedro Paixão

quinta-feira, 25 de junho de 2009

És especial!!

Salamanca, 2009 © Adelina Silva
[porque se não fosse este homem eu nunca me entregaria à poesia, porque quando me sentei no seu colo ele me disse "Tu és diferente mas lembra-te, é na diferença que reside a igualdade. És especial!", pela sua boca eu aprendi a ser-me poesia]
Eugénio de Andrade

terça-feira, 23 de junho de 2009

A espera

Madrid, 2009 © Adelina Silva

... uma das coisas que aprendi é que se deve viver apesar de. Apesar de, se deve comer. Apesar de, se deve amar. Apesar de, se deve morrer. Inclusive muitas vezes é o próprio apesar de que nos empurra para a frente. Foi o apesar de que me deu uma angústia que insatisfeita foi a criadora de minha própria vida. Foi apesar de que parei na rua e fiquei olhando para você enquanto você esperava um táxi. E desde logo desejando você, esse teu corpo que nem sequer é bonito, mas é o corpo que eu quero. Mas quero inteira, com a alma também. Por isso, não faz mal que você não venha, esperarei quanto tempo for preciso.
Clarice Lispector

segunda-feira, 22 de junho de 2009

Dor

Salamanca, 2009 © Adelina Silva


Apago todas as mensagens. Menos as tuas. Guardo a tua voz em pequenas doses e, dia sim dia não, ouço-as todas de seguida. Sinto-me demasiado incapaz para falar contigo para o que quer que seja. Não sei onde estás. Não quero saber. Tenho medo de saber mais do que sei. Uma dor de cada vez basta.

Pedro Paixão, in "Saudades de Nova Iorque"

domingo, 21 de junho de 2009

E então...

Ávila, 2009 © Adelina Silva

Tu tens um medo:
Acabar.
Não vês que acabas todo o dia.
Que morres no amor.
Na tristeza.
Na dúvida.
No desejo.
Que te renovas todo o dia.
No amor.
Na tristeza.
Na dúvida.
No desejo.
Que és sempre outro.
Que és sempre o mesmo.
Que morrerás por idades imensas.
Até não teres medo de morrer.

E então serás eterno.

Cecília Meireles

sexta-feira, 19 de junho de 2009

Memória

Madrid, 2009 © Adelina Silva

Amar o perdido
deixa confundido
este coração.

Nada pode o olvido
contra o sem sentido
apelo do Não.

As coisas tangíveis
tornam-se insensíveis
à palma da mão.

Mas as coisas findas,
muito mais que lindas,
essas ficarão.
Carlos Drummond de Andrade

quarta-feira, 17 de junho de 2009

Segredo

Salamanca, 2009 © Adelina Silva

Sei um ninho.
E o ninho tem um ovo.
E o ovo, redondinho,
Tem lá dentro um passarinho
Novo.

Mas escusam de me atentar:
Nem o tiro, nem o ensino.
Quero ser um bom menino
E guardar
Este segredo comigo.
E ter depois um amigo
Que faça o pino
A voar...


Miguel Torga

segunda-feira, 15 de junho de 2009

Carpe Diem

Madrid, 2009 © Adelina Silva
Confias no incerto amanhã? Entregas
às sombras do acaso a resposta inadiável?
Aceitas que a diurna inquietação da alma
substitua o riso claro de um corpo
que te exige o prazer? Fogem-te, por entre os dedos,
os instantes; e nos lábios dessa que amaste
morre um fim de frase, deixando a dúvida
definitiva. Um nome inútil persegue a tua memória,
para que o roubes ao sono dos sentidos. Porém,
nenhum rosto lhe dá a forma que desejarias;
e abraças a própria figura do vazio. Então,
por que esperas para sair ao encontro da vida,
do sopro quente da primavera, das margens
visíveis do humano? "Não", dizes, "nada me obrigará
à renúncia de mim próprio - nem esse olhar
que me oferece o leito profundo da sua imagem!"
Louco, ignora que o destino, por vezes,
se confunde com a brevidade do verso.

Nuno Júdice

segunda-feira, 8 de junho de 2009

Mãos

Póvoa de Varzim, 2009 © Adelina Silva

As mãos pressentem a leveza rubra do lume
repetem gestos semelhantes a corolas de flores
voos de pássaro ferido no marulho da alba
ou ficam assim azuis
queimadas pela secular idade desta luz
encalhada como um barco nos confins do olhar

ergues de novo as cansadas e sábias mãos
tocas o vazio de muitos dias de desejo e
o amargor húmido das noites e tanta ignorância
tanto ouro sonhado sobre a pele tanta treva
quase nada
Al Berto

sexta-feira, 5 de junho de 2009

Chopin

Gondomar, 2009 © Adelina Silva


Não se acende hoje a luz... Todo o luar
Fique lá fora. Bem Aparecidas
As estrelas miudinhas, dando no ar
As voltas dum cordão de margaridas!

Entram falenas meio entontecidas
Lusco-fusco... morcego a palpitar
Passa... torna a passar... torna a passar...
As coisas têm o ar de adormecidas...

Mansinho... Roça os dedos pelo teclado,
No vago arfar que tudo alteia e doira,
Alma, Sacrário de Almas, meu Amado

E, enquanto o piano a doce queixa exala,
Divina e triste, a grande sombra loira
Vem para mim da escuridão da sala...

Florbela Espanca

quarta-feira, 3 de junho de 2009

Teia de Aranha


Gondomar, 2009 © Adelina Silva

Teci durante a noite a teia astuciosa
Dum poema.
Armei o laço ao sol que há-de nascer.
Rede frágil de versos,
É nela que o meu sono se futura
Eterno e natural,
Embalado na própria sepultura.
Vens ou não vens agora, astro real,
Doirar os fios desta baba impura?

Miguel Torga


Gondomar, 2009 © Adelina Silva

segunda-feira, 1 de junho de 2009

Como eu não possuo

Porto, 2009 © Adelina Silva

Quero sentir. Não sei... perco-me todo...
Não posso afeiçoar-me nem ser eu:
Falta-me egoísmo pra ascender ao céu.
Falta-me unção pra me afundar no lodo.
Mário de Sá-Carneiro