domingo, 24 de maio de 2015

A emergência do caos

Lisboa, 2015 © Adelina Silva

Seguindo os princípios científicos, a teoria

da catástrofe integra o caos, como realidade,

no mundo da ordem e do previsível. Se

encho uma taça com vinho

espumante, e olho para o que se passa

dentro do líquido, as súbitas erupções de

bolhas em pontos em que o líquido parecia

inalterável, são uma amostra do que pode

suceder, a cada instante, no cosmos. Aquele

astro que brilha à nossa vista, esfumar-se-á

de súbito caso um buraco negro o sorva; e

aquele cume de ilha, algures no Pacífico, com

a verdura exuberante de uma vegetação

que se assemelha ao desenho de um hábil

explorador, pode explodir numa erupção vulcânica

que nada faria prever. Deste modo, diz-nos a Teoria,

o caos está aqui, na ponta dos dedos, e talvez

algo possa acontecer quando, ao chegar

ao fim do poema, ponho um ponto final,

isto é, um ponto que me parecia final antes

que um erro do teclado, no computador, apague

tudo o que escrevi, e me confirme a exactidão

da catástrofe já não como teoria, mas como

pura realidade.


Nuno Júdice, in "O Fruto da Gramática"


domingo, 10 de maio de 2015

Ir|realidades

2015 © Adelina Silva

"Que tipo de gente vive lá?"
"Naquela direção", o Gato disse, apontando sua pata direita em círculo," vive o Chapeleiro, e aquela, apontando a outra pata, "vive a Lebre de Março. Visite qualquer um que você queira, os dois são malucos."
"Mas eu não quero ficar entre gente maluca", Alice retrucou.
"Oh, você não tem saída", disse o Gato, "nós somos todos malucos aqui. Eu sou louco. Você é louca."
"Como você sabe que eu sou louca?", perguntou Alice.
"Você deve ser", afirmou o Gato, "ou então não teria vindo para cá."
Alice não achou que isso provasse nada afinal: entretanto, ela continuou: "E como você sabe que você é maluco?"
"Para começar", disse o Gato, "um cachorro não é louco. Você concorda?"
"Eu suponho que sim", respondeu Alice.
"Então, bem", o Gato continuou, "você vê os cães rosnarem quando estão bravos e balançar o rabo quando estão contentes. Bem, eu rosno quando estou feliz e balanço o rabo quando estou bravo. Portanto, eu sou louco."

Lewis Carroll, in "Alice no País das Maravilhas"


domingo, 3 de maio de 2015

Já não vivo, só penso...

Porto, 2015 © Adelina Silva

Já não vivo, só penso. E o pensamento 
é uma teia confusa, complicada, 
uma renda subtil feita de nada: 
de nuvens, de crepúsculos, de vento. 

Tudo é silêncio. O arco-íris é cinzento, 
e eu cada vez mais vaga, mais alheada. 
Percorro o céu e a terra aqui sentada, 
sem uma voz, um olhar, um movimento. 

Terei morrido já sem o saber? 
Seria bom mas não, não pode ser, 
ainda me sinto presa por mil laços, 

ainda sinto na pele o sol e a lua, 
ouço a chuva cair na minha rua, 
e a vida ainda me aperta nos seus braços. 

Fernanda de Castro, in "E Eu, Saudosa, Saudosa"




Porto, 2015 © Adelina Silva