sábado, 28 de agosto de 2010

We no speak...

Apúlia, 2010 © Adelina Silva

Pessoas com poucas capacidades não conseguirão realmente assimilar com facilidade uma língua estrangeira: embora aprendam as suas palavras, empregam-nas apenas no significado do equivalente aproximado da sua língua materna e continuam a manter as construções e frases próprias desta última. Com efeito, esses indivíduos não conseguem assimilar o espírito da língua estrangeira, que depende essencialmente do facto do seu pensamento não se dar por meios próprios, mas, em grande parte, de ser emprestado pela língua materna, cujas frases e locuções habituais substituem os seus próprios pensamentos. Eis, portanto, a razão de eles sempre se servirem, também na própria língua, de expressões idiomáticas desgastadas, combinando-as de modo tão inábil, que logo se percebe quão pouco se dão conta do seu significado e quão pouco todo o seu pensamento supera as palavras, de modo que tudo se reduz a um palratório de papagaios. Pela razão oposta, a originalidade das locuções e a adequação individual de cada expressão usada por alguém são o sintoma inequivocável de um espírito preponderante.

Arthur Schopenhauer, in “Da Língua e das Palavras”


Sugestão Musical
Yolanda Be Cool & Dcup - We No Speak Americano

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Repouso

Bombarral, 2010 © Adelina Silva

A mente não se deve manter sempre na mesma intenção ou tensão, antes deve dar-se também à diversão. (...) O nosso espírito deve relaxar: ficará melhor e mais apto após um descanso. Tal como não devemos forçar um terreno agrícola fértil com uma produtividade ininterrupta que depressa o esgotaria, também o esforço constante esvaziará o nosso vigor mental, enquanto um curto período de repouso restaurará o nosso poder. O esforço continuado leva a um tipo de torpor mental e letargia. Nem os desejos dos homens devem encaminhar-se tão depressa nesta direcção se o desporto e o jogo os envolvem numa espécie de prazer natural; embora uma repetida prática destrua toda a gravidade e força do nosso espírito. Afinal, o sono também é essencial para nos restaurar, mas se o prolongássemos constantemente, dia e noite, seria a morte.

Séneca, in "Da Brevidade da Vida"
Sugestão Musical
Britney Spears - Everytime (Instrumental)

sábado, 21 de agosto de 2010

Sobre todas as coisas

Póvoa de Varzim, 2010 © Adelina Silva

Sentado a teu lado reparando nas nuvens
Reparo nelas melhor …
Tu não me tiraste a Natureza …
Tu não me mudaste a Natureza …
Trouxeste-me a Natureza para ao pé de mim.
Por tu existires vejo-a melhor, mas a mesma,
Por tu me amares, amo-a do mesmo modo, mas mais,
Por tu me escolheres para te ter e te amar,
Os meus olhos fitam-na mais demoradamente
Sobre todas as coisas

Não me arrependo do que fui outrora
Porque ainda o sou.
Só me arrependo de outrora te não ter amado.
Alberto Caeiro
Sugestão Musical
Michael Nyman - Time Lapse

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

O Anjo de Pernas Tortas

Apúlia, 2010 © Adelina Silva

A um passe de Didi, Garrincha avança
Colado o couro aos pés, o olhar atento
Dribla um, dribla dois, depois descansa
Como a medir o lance do momento.

Vem-lhe o pressentimento; ele se lança
Mais rápido que o próprio pensamento,
Dribla mais um, mais dois; a bola trança

Feliz, entre seus pés – um pé de vento!

Num só transporte, a multidão contrita
Em ato de morte se levanta e grita
Seu uníssono canto de esperança.

Garrincha, o anjo, escuta e atende: Gooooool!

É pura imagem: um G que chuta um O
Dentro da meta, um L. É pura dança!

Vinicius de Moraes

quinta-feira, 12 de agosto de 2010

Teu Olhar

© Adelina Silva

Teus olhos são a pátria do relâmpago e da lágrima,
silêncio que fala,
tempestades sem vento, mar sem ondas,
pássaros presos, douradas feras adormecidas,
topázios ímpios como a verdade,
outono numa clareira de bosque onde a luz canta no ombro
duma árvore e são pássaros todas as folhas,
praia que a manhã encontra constelada de olhos,
cesta de frutos de fogo,
mentira que alimenta,
espelhos deste mundo, portas do além,
pulsação tranquila do mar ao meio-dia,
universo que estremece,
paisagem solitária.

Octavio Paz, in "Liberdade sob Palavra"


Sugestão Musical
Rodrigo Leão - Gente Diferente

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Vencer o Medo

Magalluf, 2010 © Adelina Silva

Parecemos estar hoje animados quase exclusivamente pelo medo. Receamos até aquilo que é bom, aquilo que é saudável, aquilo que é alegre. (…) Tudo aquilo a que fechamos os olhos, tudo aquilo de que fugimos, tudo aquilo que negamos, denegrimos ou desprezamos, acaba por contribuir para nos derrotar. O que nos parece sórdido, doloroso, mau, poderá tornar-se numa fonte de beleza, alegria e força, se o enfrentarmos com largueza de espírito. Todos os momentos são momentos de ouro para os que têm a capacidade de os ver como tais. A vida é agora, são todos os momentos, mesmo que o mundo esteja cheio de morte. A morte só triunfa ao serviço da vida.

Henry Miller, in "O Mundo do Sexo"

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Maquin'arte

Magalluf, 2010 © Adelina Silva

Uma máquina é pura, desde a inocência com que se nos revela, ou seja precisamente a exterioridade em que se nos dá. Mas uma inocência é uma abertura à realização do que o não é. O destino de uma máquina tem o destino que lhe dermos, e um dos piores é o finalizá-la nela própria. Assim e para lá da criação do seu próprio espaço, por uma máquina, da alteração que a sua própria existência em nós promove, todo o problema se decide no lugar-comum desta alternativa: remeter a máquina ao homem ou degradar o homem à máquina.

Vergílio Ferreira, in "Invocação ao Meu Corpo"