Há quem tenha alento E segure porte de grupo... Há quem no primeiro cumprimento Saia duplamente surpreendido E disfarce o arrependimento com lata de puto... (…) E há quem viva de aparências, Na comparação achada possível De querer ser o que não é Por pensar, de que tudo é, Incomparavelmente acessível!...
Não há dúvida de que é inútil e prejudicial lamentarmo-nos perante o mundo. Resta saber se não é igualmente inútil e prejudicial lamentarmo-nos perante nós próprios. Evidentemente. De facto, ninguém se lamentará perante si próprio, a fim de se incitar à piedade, o que nada significaria, dado que a piedade é, por definição, o voluptuoso encontro de dois espíritos. Para quê, então? Não para obter favores, porque o único favor que um espírito pode fazer a si próprio é conceder-se indulgência, e toda a gente percebe quanto é prejudicial que a vontade seja indulgente para com a sua própria e lamentável fraqueza.
Resta a hipótese de o fazermos para extrair verdades do nosso coração amolecido pela ternura. Mas a experiência ensina que as verdades surgem apenas em virtude de uma pacata e severa busca, que surpreende a consciência numa atitude inesperada e a vê, como de um filme que parasse de repente, estupefacta, mas não emocionada.
Mas a nossa vista aguçou-se e fizemos um progresso cruel. Com o avião tornámo-nos cientes da linha recta. Assim que descolámos deixamos esses caminhos que se inclinam para os bebedoiros e estábulos, ou serpenteiam de cidade para cidade. Libertos doravante das servidões bem-amadas, libertos da falta de fontes, rumamos para os nossos objectivos longínquos. Só então descobrimos, do alto das nossas trajectórias rectilíneas, o substrato principal, a assentada de rochas, de areia ou de sal, onde às vezes a vida, como um pouco de musgo nos buracos das ruínas, aqui e ali se atreve a florir.
(…) Sinto-me como um grão de areia numa praia deserta. A meu lado, milhões me acompanham e, no entanto, sinto-me só. Estou só. Sou só. Faltas-me tu. Por vezes, a maré traz as ondas e, com elas, pedras que se arrastam e se depositam sobre mim. Essa pedra especial que viaja pelo mar, és tu, que sempre procuravas repousar junto a mim. Não és como uma pedra no sapato. Não, tu não és como as outras. Por ti subiria as mais altas montanhas, ainda que com pedras nos sapatos. Tu és especial. És a pedra que me sustenta, a pedra que me constrói, edifica, torna maior. Torna-nos maiores. Sê maior comigo! (…)
Se se diz a uma mulher que certo homem é inteligente, ela escreve mentalmente um zero. Se se diz que é culto, ela escreve outro zero. Se acrescentarmos que é belo, amável, com boa reputação social e tudo o mais que se quiser, ela acrescenta outros zeros. Se finalmente se confidenciar que ele é bom na cama, ela escreve um 1 antes dos zeros todos. (Tenho ideia de ter lido qualquer coisa de semelhante a esta conta não sei onde. Mas como não sei onde, façamos de conta que a conta é minha. Porque de qualquer modo, é exacta).
Mar - … agitado, de água branca, atravessado, cavado, cruzado, desencontrado, desfeito, espelhado, esperto, estanhado, verde, em flor, de fora, grande, interior, lançado, largo, de leite, vivo. Ver em «Isso Ontem Único», de António Maria Lisboa.
Um rasgão de luz sobre a pele, dormes na seiva doce das manhãs.
Mas sabes que só há repouso para o sofrimento quando se entra no primeiro dia dos dias sem ninguém. (…) Viajo, sem me mexer desta enxerga branca. Tento encontrar espaço para a lucidez do meu silêncio.