quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Pescaria


Apúlia, 2011 © Adelina Silva

Cesto de peixes no chão.
Cheio de peixes, o mar.
Cheiro de peixe pelo ar.
E peixes no chão.

Chora a espuma pela areia,
na maré cheia.

As mãos do mar vêm e vão,
as mãos do mar pela areia
onde os peixes estão.

As mãos do mar vêm e vão,
em vão.
Não chegarão
aos peixes do chão.

Por isso chora, na areia,
a espuma da maré cheia.

Cecília Meireles, in "Ou isto ou aquilo"


sábado, 24 de setembro de 2011

Não sei por onde vou


Londres, 2011 © Adelina Silva

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
- Sei que não vou por aí!

José Régio, extrato "Cântico Negro"


terça-feira, 20 de setembro de 2011

Inesperada ausência


Atapuerca, 2010 © Adelina Silva

Foi no dia em que a tua inesperada ausência abriu feridas no pulso das horas. Esperei até ao anoitecer com o lenço amarrotado. Tínhamos combinado viajar sem rumo e sem bússola. Não havia cidades nem portos assinalados na cartografia das mãos.

Alberto Serra, in "O Aparo do Demónio"


sexta-feira, 16 de setembro de 2011

Fado da Sina


Póvoa de Varzim, 2011 © Adelina Silva

Reza-te a sina nas linhas traçadas na palma da mão,
Que duas vidas se encontram cruzadas no teu coração.
Sinal de amargura, de dor e tortura, de esperança perdida,
Destino marcado de amor destroçado na linha da vida.

E mais se reza na linha do amor que terá de sofrer
O desencanto ou leve dispor de uma outra mulher.
Já que a má sorte assim quis, a tua sina te diz...
Que até morrer, terás de ser, sempre infeliz.

Amadeu do Vale, extrato da letra do "Fado da Sina"


terça-feira, 13 de setembro de 2011

A festa


Oviedo, 2008 © Adelina Silva

Escuto na palavra a festa do silêncio.
Tudo está no seu sítio. As aparências apagaram-se.
As coisas vacilam tão próximas de si mesmas.
Concentram-se, dilatam-se as ondas silenciosas.
É o vazio ou o cimo? É um pomar de espuma.

Uma criança brinca nas dunas, o tempo acaricia,
o ar prolonga. A brancura é o caminho.
Surpresa e não surpresa: a simples respiração.
Relações, variações, nada mais. Nada se cria.
Vamos e vimos. Algo inunda, incendeia, recomeça.

Nada é inacessível no silêncio ou no poema.
É aqui a abóbada transparente, o vento principia.
No centro do dia há uma fonte de água clara.
Se digo árvore a árvore em mim respira.
Vivo na delícia nua da inocência aberta.
António Ramos Rosa, in "Volante Verde"

domingo, 11 de setembro de 2011

Olhos de sol


Póvoa de Varzim, 2011 © Adelina Silva

O mocho traz nos olhos,
escondido, um sol. Com ele,
incendeia a noite.
Albano Martins

quinta-feira, 8 de setembro de 2011

Junto à Serra do Pilar


Porto, 2010 © Adelina Silva

Quem vem e atravessa o rio,
junto à Serra do Pilar,
vê um velho casario
que se estende até ao mar.
(...)
Carlos Tê

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

Quarto Crescente


2011 © Adelina Silva

Porque vejamos: uma lua destas
já nem lua é. A lua quer-se grande,
leitosa, apontável às crianças:
olha o homem da lua, os olhos, a

vassoura. Mas uma lua destas,
desfazendo-se em sombras, um ar
de quem passou o dia em claro
já nem lua é. Que não exija então

o impossível, que não se finja
a sério a pedir versos e algum olhar:
o poeta não usa telescópio,
nem se vai acordar uma criança
por gomos de luar

Ana Luísa Amaral

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

Quem abre a porta ao gato?


Monção, 2011 © Adelina Silva

Quem há-de abrir a porta ao gato
...quando eu morrer?

Sempre que pode
foge prá rua
cheira o passeio
e volta para trás,
mas ao defrontar-se com a porta fechada
(pobre do gato!)
mia com raiva
desesperada.

Deixo-o sofrer
que o sofrimento tem sua paga,
e ele bem sabe.

Quando abro a porta corre para mim
como acorre a mulher aos braços do amante.
Pego-lhe ao colo e acaricio-o
num gesto lento,
vagarosamente,
do alto da cabeça até ao fim da cauda.
Ele olha-me e sorri, com os bigodes eróticos,
olhos semicerrados, em êxtase,
ronronando.

Repito a festa,
vagarosamente,
do alto da cabeça até ao fim da cauda.
Ele aperta as maxilas,
cerra os olhos,
abre as narinas,
e rosna,
rosna, deliquescente,
abraça-me
e adormece.

Eu não tenho gato, mas se o tivesse
quem lhe abriria a porta quando eu morresse?

António Gedeão