domingo, 27 de dezembro de 2009

Estado de alma

Póvoa de Varzim, 2009, © Adelina Silva

Há duas maneiras de olhar as coisas, como há duas maneiras de as não olhar. Ou se olham pondo-nos de fora delas ou pondo-nos dentro delas. Só no segundo caso as vemos bem, porque só então nos vemos mal ou simplesmente nos perdemos a nós de vista. O primeiro ver é o do homem prático, o segundo, o do artista. Um e outro também divergem no modo de não ver as coisas. O primeiro porque simplesmente as não vê; o segundo porque não repara nelas. Ao contrário do que se supõe, o mundo real não existe para o homem prático: o que existe é a sua instrumentalização.

Vergílio Ferreira, in "Conta-Corrente 2"

quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

O Medo foi de Férias

Gondomar, 2009 © Adelina Silva

O medo vai ter tudo
fantasmas na ópera
sessões contínuas de espiritismo
milagres
cortejos
frases corajosas
meninas exemplares
seguras casas de penhor
maliciosas casas de passe
conferências várias
congressos muitos
óptimos empregos
poemas originais
e poemas como este
projectos altamente porcos
heróis
(o medo vai ter heróis!)
costureiras reais e irreais
operários
(assim assim)
escriturários
(muitos)
intelectuais
(o que se sabe)
a tua voz talvez
talvez a minha
com a certeza a deles

extracto do "Poema  pouco original do Medo", de Alexandre O'Neill

domingo, 20 de dezembro de 2009

A Pele do Medo

Santiago de Compostela, 2009 © Adelina Silva


não te rogo. pressinto-te deste lado e sei que nunca te tive como pensavas que te tinha. subiste um pano, mostraste-me o que eras, solto, leve, e não soube ver que aquilo era algo que vendias, algo que tentavas entregar a quem não te era como eu te era.

não é a tua pele que sinto quando me tocas como agora me tocas, é um fio de saudade, uma corda de dor, um medo próximo que julgávamos distante.

nunca desisti, amor.

deixei-te perdido, atirado para a sarjeta da mágoa solitária. nada me pediu que o fizesse. foi um lapso de amor, como se o amor fosse um rolo fotográfico com espaços em branco, imagens que não saem. venci-me por um espaço em branco. fraqueza. derrotei-me por ser humana.

Pedro Chagas Freitas, in "A Pele do Medo" (a publicar)


quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

Morte de Rimbaud

Madrid, 2009 © Adelina Silva




Dantes ouvia o mar... bastava encostar a cabeça ao peito um do outro.
Mas um homem em cujo coração esteja concentrada toda a fúria de viver, será um homem feliz?
Não sei se posso querer alguma eternidade... não sei...
... o que vejo já não se pode cantar.

Que horas serão dentro do meu corpo?
Que mineral vermelho jorraria se golpeasse uma veia... não sei...
... o que vejo já não se pode cantar.
Lembro-me duma cabeça rebelde flutuando junto à janela. Mas a casa está repleta de gemidos, vai amanhecer, não me lembro de mais nada.
Al Berto, in “Horto de Incêncio”

sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

Fantasmas

Porto, 2009 © Adelina Silva
(…)
verdade - bateram à porta
mas não podias abrir
nesta casa só sobrevive a memória turva
dos poemas amados - mais ninguém mais nada
além da parede de lodo e da caixa de sapatos
cheia de sílabas preciosas - e uma mesa pequena
com um albatroz empalhado para te vigiar a alma
(…)
Al Berto, in “Horto de Incêndio”

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

Crystie Street

Sevilha, 2009 © Adelina Silva


O caminho está cheio de cidades
Cujo nome perdi. Tal como o teu.
Cobria-te do sol pela manhã
E era suave ocultar-te com o corpo.
Isso deve bastar-te. Basta-me a mim.
É inútil chorares aí à porta:
Os sapatos conduzem ao caminho.
Atira se puderes minha lembrança a um poço
Ou aprende as canções da tua infância.
Os sapatos conduzem-me ao caminho.
J.M. Fonollosa, in “Cidade do Homem: New York”