segunda-feira, 30 de abril de 2012

Esta gente


Valencia, 2012 © Adelina Silva

(...)
Pois a gente que tem
O rosto desenhado
Por paciência e fome
É a gente em quem

Um país ocupado
Escreve o seu nome
E em frente desta gente
Ignorada e pisada

Como a pedra do chão
E mais do que a pedra
Humilhada e calcada
Meu canto se renova

E recomeço a busca
De um país liberto
De uma vida limpa
E de um tempo justo
Sophia de Mello Breyner Andresen, in "Geografia"

quinta-feira, 26 de abril de 2012

O poder da escrita


Vila Nova de Gaia, 2009 © Adelina Silva

Escreve. Seja uma carta, um diário ou umas notas enquanto falas ao telefone, mas escreve. Procura desnudar a tua alma por escrito, ainda que ninguém leia; ou, o que é pior, que alguém acabe lendo o que não querias. O simples acto de escrever ajuda-nos a organizar o pensamento e a ver com mais clareza o que nos rodeia. Um papel e uma caneta fazem milagres, curam dores, consolidam sonhos, levam e trazem a esperança perdida. As palavras têm poder.
Paulo Coelho, in "Maktub"

domingo, 22 de abril de 2012

Meditação


Andorra, 2011 © Adelina Silva

Portanto farei uma escada no coração.
E pelos degraus subirei da minha casa
Até bater com o pensamento no altíssimo.
Apagarei os passos e o cérebro como um rasto no deserto
Sempre atento como a águia quando fixa o sol
Sem pestanejar.
Farei portanto a escada no deserto para fixar
A luz.
Da minha casa subirei sem palavras
Em silêncio, portanto, pisando o coração.
Daniel Faria

sexta-feira, 20 de abril de 2012

A escolha


Póvoa de Varzim, 2011 © Adelina Silva

(...)
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...

Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?

Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...

Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.
(...)


José Régio

quinta-feira, 19 de abril de 2012

O Pianista


Gondomar, 2009 © Adelina Silva

Senta-se imita
o autor Os
holofotes douram-no
é a vítima
dos expansivos círculos do som

Em torno dele o som é como
um laço
Está sentado na margem do
teclado detendo com os braços
a força ameaçadora das águas


Gastão Cruz, in "O Pianista"

domingo, 15 de abril de 2012

Ilusão do tempo e figuras


Valencia, 2012 © Adelina Silva

(…)
E a direção do olhar. E o espaço antigo
Para a forma do gesto e do vestido.

E o lugar da esperança. E a fonte . E a sombra.
E a voz que já não fala, e se prolonga.

E eis a névoa que chega, envolve as ruas,
Move a ilusão de tempos e figuras.

_ A névoa que se adensa e vai formando
nublados reinos de saudade e pranto.


Cecília Meirelles, in "Romanceiro da Inconfidência"

sexta-feira, 13 de abril de 2012

Estar só é...


Valencia, 2012 © Adelina Silva

Por vezes cada objecto se ilumina
do que no passar é pausa íntima
entre sons minuciosos que inclinam
a atenção para uma cavidade mínima
E estar assim tão breve e tão profundo
como no silêncio de uma planta
é estar no fundo do tempo ou no seu ápice
ou na alvura de um sono que nos dá
a cintilante substância do sítio
O mundo inteiro assim cabe num limbo
e é como um eco límpido e uma folha de sombra
que no vagar ondeia entre minúsculas luzes
E é astro imediato de um lúcido sono
fluvial e um núbil eclipse
em que estar só é estar no íntimo do mundo.

António Ramos Rosa, in "Poemas Inéditos"

segunda-feira, 9 de abril de 2012

Sueca


Porto, 2009 © Adelina Silva

Esta é uma cidade para homens velhos, uma luz
epidérmica com seu câmbio e topografia.
reconhecem-se pelos olhos, outros pelos sapatos, jogam sueca,
antes de nós já assim estavam sentados, e ficarão.

Pedro Mexia, in "Eliot e Outras Observações"

sexta-feira, 6 de abril de 2012

Não basta


Valencia, 2012 © Adelina Silva

Não basta abrir a janela
Para ver os campos e o rio.
Não é bastante não ser cego
Para ver as árvores e as flores.
É preciso também não ter filosofia nenhuma.
Com filosofia não há árvores: há idéias apenas.
Há só cada um de nós, como uma cave.
Há só uma janela fechada, e todo o mundo lá fora;
E um sonho do que se poderia ver se a janela se abrisse,
Que nunca é o que se vê quando se abre a janela.

Alberto Caeiro