quinta-feira, 30 de abril de 2009

Sonho naufragado

Póvoa de Varzim, 2009 © Adelina Silva

Pus o meu sonho num navio
e o navio em cima do mar;
depois, abri o mar com as mãos,
para o meu sonho naufragar

Minhas mãos ainda estão molhadas
do azul das ondas entreabertas,
e a cor que escorre de meus dedos
colore as areias desertas.

O vento vem vindo de longe,
a noite se curva de frio;
debaixo da água vai morrendo
meu sonho, dentro de um navio...

Chorarei quanto for preciso,
para fazer com que o mar cresça,
e o meu navio chegue ao fundo
e o meu sonho desapareça.

Depois, tudo estará perfeito;
praia lisa, águas ordenadas,
meus olhos secos como pedras
e as minhas duas mãos quebradas.

Cecília Meireles

quarta-feira, 29 de abril de 2009

Retrato

Paços de Ferreira, 2009 © Adelina Silva

Eu não tinha este rosto de hoje,
assim calmo, assim triste, assim magro,
nem estes olhos tão vazios,
nem o lábio amargo.

Eu não tinha estas mãos sem força,
tão paradas e frias e mortas;
eu não tinha este coração
que nem se mostra.

Eu não dei por esta mudança,
tão simples, tão certa, tão fácil:
— Em que espelho ficou perdida
a minha face?
Cecília Meireles

terça-feira, 28 de abril de 2009

Saudades de quem nunca fui

Paços de Ferreira, 2009 © Adelina Silva
Tinha o vento contra a cara e as nuvens e as ondas do mar por conta própria. Sofria muito de amores e não havia amor que durasse que não magoasse. Jurava-me que um dia viria a não ser eu, sem saber o que dizia, sem antecipar a ilusão. (…) E agora a dor de ser já quem se não queria, ultrapassada a irremediável distância que vai do desejo ao seu fim, sem nada mais poder adivinhar. Saudades de mim, de quem nunca fui.


Pedro Paixão, in "Quase Gosto da Vida que Tenho"

segunda-feira, 27 de abril de 2009

Tempestade

Porto, 2009 © Adelina Silva

“Por vezes o destino é como uma pequena tempestade de areia que não pára de mudar de direcção. Tu mudas de rumo, mas a tempestade de areia vai atrás de ti. Voltas a mudar de direcção, mas a tempestade persegue-te, seguindo no teu encalço. Isto acontece uma vez e outra e outra, como uma espécie de dança maldita com a morte ao amanhecer. Porquê? Porque esta tempestade não é uma coisa que tenha surgido do nada, sem nada que ver contigo. Esta tempestade és tu. Algo que está dentro de ti.”

Haruki Murakami, in “Kafka à beira-mar”

domingo, 26 de abril de 2009

Olha, amor

Póvoa de Varzim, 2009 © Adelina Silva


Ainda bem que deixaste a porta aberta ao silêncio.
Ainda bem que não nos tornamos cúmplices da indiferença.

Foi reconfortante aprender a precisar de ti
Dizer “amor” tardiamente, partir para a aventura dos sentidos.


Leonor Bettencourt Bernardo

sábado, 25 de abril de 2009

Estou capaz de ...

Sevilha, 2009 © Adelina Silva

Hoje! Bem, hoje ninguém se meta comigo!
Estou dorido, ofendido e perdido!
Hoje, não quero trabalhar nem conversar.
Estou emperdenido;
Malcriado e aborrecido.
Estou capaz de matar.

David Santos

sexta-feira, 24 de abril de 2009

Porquê eu?

Sevilha, 2009 © Adelina Silva

Já há muito que procuro
Procuro o quê?
Procuro Procuro
Não sei
Ando aos tropeções às apalpadelas
Já não sei o que pensar
Serei só eu a sofrer?
Parecem tão distantes
Não sinto ninguém
Mas continuo nesta vida
No fim do caminho
Saberei ou serei apenas mais uma?


Isabel Romano Colaço

quinta-feira, 23 de abril de 2009

Lonjura

Sevilha, 2009 © Adelina Silva

Esta é a viagem forjada no espaço,
No vácuo…
Formada da sombra de uma estrela extinta
Antes do tempo sequer haver.
Viagem da lonjura, da matéria, da perdição.

Estas são as palavras caladas,
As palavras embargadas pela própria solidão
Onde apenas o silêncio permanece.

Este é o poema interminável,
Cinzelado a golpes de ausência
Na ferocidade do silêncio.
Pedro Ferreira

quarta-feira, 22 de abril de 2009

Espera gravada

Sevilha, 2009 © Adelina Silva

Num silêncio que não nasce nem se põe
estava ali o meu amor à minha espera.
E entregar-me logo a ela, quem me dera, quem me dera…

Soam os meus lamentos pela vedação do seu silêncio
cheio de amor a esvair-se por entre as macieiras
cujas flores murmuram o meu nome ao seu ouvido

Numa ânsia doce no sabor da maçã
tornando-se ecoante o meu pedido,
para que me queiras, para que me queiras.

João António Peixoto

terça-feira, 21 de abril de 2009

A nossa história

Sevilha, 2009 © Adelina Silva

No traço que te desenho,
na frase de que és poema,
na canção que te segredo
és o alvo que não tenho
e sem saber de outro tema
mais não somos que enredo.

Luís Telésforo

segunda-feira, 20 de abril de 2009

Não tenhas pressa

Sevilha, 2009 © Adelina Silva

Fica. Não adormeças. Não apagues a luz, sabes que tenho tanto medo do escuro.
Não me acordes cedo. Deixa-me aconchegar com carinho no teu ombro no começo de um dia sem pressa.
Fica, não esperes que o dia se esconda, se ensombre, se acobarde, se revolte.
Não chames as dúvidas, afaga-me o cabelo, os sentidos…
Desperta-me apenas de um possível pesadelo… Tenho tantos.
(…)
Não feches a janela, deixa-me continuar a beber o azul tórrido de uma lua húmida que se arrasta dengosa no final de mais um dia cansado do nada.
Fica comigo.
Até que o desejo adormeça
Até que a lua se canse de sorrir
Até que os nossos corpos se sintam dormentes
Até que o nosso amor dure
Até que seja possível acreditar no nosso desassossego
Até que deixe de sentir esta vontade imensa de estar contigo
Até que o fim se deixe anunciar.

Fica comigo.
Não me acordes, não me despertes.
Deixa que o tempo se escape, que voe, com calma.
Deixa que o nosso silêncio acabe por ser tudo
Deixa muito espaço para o amor que iremos fazer no próximo minuto.

Fica, sem pressas.

O amor vive apenas de pequenos instantes.

Leonor Bettencourt Bernardo

domingo, 19 de abril de 2009

Suspiro

Sevilha, 2009 © Adelina Silva

Suspiro, quero ir contigo,
Leve fumo dum lamento,
Para o céu do sentimento.
Quero ver onde vais ter,
Vão filho das nossas queixas
Depois que leve nos deixas.
Talvez que contigo indo
Conhecerei finalmente
Onde a alegria se sente.
Para quê?
Eu regressava.
Conhecendo ficaria
Melhor o que é alegria;
Era a suprema desgraça
— Pra quem a não pode ter
Quanto é bela conhecer.


Fernando Pessoa

quinta-feira, 16 de abril de 2009

Espaço Curvo e Finito

Apúlia, 2009 © Adelina Silva


Oculta consciência de não ser,
Ou de ser num estar que me transcende,
Numa rede de presenças e ausências,
Numa fuga para o ponto de partida:
Um perto que é tão longe, um longe aqui.
Uma ânsia de estar e de temer
A semente que de ser se surpreende,
As pedras que repetem as cadências
Da onda sempre nova e repetida
Que neste espaço curvo vem de ti.

José Saramago, in "Os Poemas Possíveis"

quarta-feira, 15 de abril de 2009

À parte disso...

Póvoa de Varzim, 2009 © Adelina Silva


Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

Álvaro de Campos

terça-feira, 14 de abril de 2009

De onde és?

Póvoa de Varzim, 2009 © Adelina Silva

Não tu és da cidade aventureira
da cidade onde o amor encontra as suas ruas
e o cemitério ardente
da sua morte
tu és da cidade onde vives por um fio
de puro acaso
onde morres ou vives não de asfixia
mas às mãos de uma aventura de um comércio puro

sem a moeda falsa do bem e do mal

Alexandre O´Neill

segunda-feira, 13 de abril de 2009

Tenho tempo para ti

Póvoa de Varzim, 2009 © Adelina Silva


Para um amigo tenho sempre um relógio
esquecido em qualquer fundo da algibeira.
Mas esse relógio não marca o tempo inútil.
São restos de tabaco e de ternura rápida.
É um arco-íris de sombra, quente e trémulo.
É um copo de vinho com o meu sangue e o sol.



António Ramos Rosa

domingo, 12 de abril de 2009

Voo solitário

Póvoa de Varzim, 2009 © Adelina Silva
“Sou livre. Fecho os olhos e penso com toda a minha força na minha nova condição. Ainda que não esteja bem certo do que significa. Tudo o que sei é que estou completamente sozinho. Desterrado numa terra desconhecida, como um explorador solitário sem bússola nem mapa. Será isto a liberdade? Não sei, confesso, e às tantas desisto de pensar nisso.”

Haruki Murakami, in “Kafka à beira-mar”

sábado, 11 de abril de 2009

Mágoas antigas

Póvoa de Varzim, 2009 © Adelina Silva

"Contudo, quando estou magoado reaparecem as mágoas antigas; quando me sinto culpado, volta a culpabilidade de então; e no desejo e na nostalgia de hoje, esconde-se o desejo e a nostalgia de ontem. As camadas da nossa vida repousam tão perto umas das outras que no presente adivinhamos sempre o passado, que não está posto de parte e acabado, mas presente e vivido. Compreendo isto. Mas por vezes é quase suportável."

Bernhard Schlink, in “O Leitor”

sexta-feira, 10 de abril de 2009

Livre

Póvoa de Varzim, 2009 © Adelina Silva

"Um dia, enquanto escutava o silêncio, ocorreu-me a dúvida sobre qual seria o efeito de eu gritar muito alto. Na altura pareceu-me uma terrível sugestão da imaginação, um “pensamento ilegítimo e duvidoso” que quase me provocou um arrepio, e fiquei ansioso por afastá-lo rapidamente do meu espírito. Mas, naqueles dias de solidão, era raro ocorrer qualquer pensamento à minha mente (…) O meu estado era de suspense e vigilância. Não tinha, contudo, qualquer expectativa de me deparar com uma aventura e sentia-me tão liberto de apreensões como me sinto agora, sentado neste quarto em Londres…"

W.H.Hudson, in "Idle Days in Patagonia", cit. in Chatwin, B. & Theroux, P., in "Regresso à Patagónia"

quinta-feira, 9 de abril de 2009

Inconfesso Desejo

Póvoa de Varzim, 2009 © Adelina Silva
Queria ter coragem
Para falar deste segredo
Queria poder declarar ao mundo
Este amor
Não me falta vontade
Não me falta desejo
Você é minha vontade
Meu maior desejo
Queria poder gritar
Esta loucura saudável
Que é estar em teus braços
Perdido pelos teus beijos
Sentindo-me louco de desejo
Queria recitar versos
Cantar aos quatros ventos
As palavras que brotam
Você é a inspiração
Minha motivação
Queria falar dos sonhos
Dizer os meus secretos desejos
Que é largar tudo
Para viver com você
Este inconfesso desejo
Carlos Drummond de Andrade

quarta-feira, 8 de abril de 2009

Confissão

Póvoa de Varzim, 2009 © Adelina Silva


"Queres saber onde estou? Estou no lugar onde qualquer pessoa que foi amada se encontra. No mexer, no sussurrar, na entrega, no incansável prazer, na alma a dois. Lindo é o meu amor nómada que não pára de fugir de paisagem em paisagem e me vem visitar sempre que o não espero. Para sentir bater mais forte o meu coração que ele envolve como uma serpente. (...)
Vem ter comigo que eu não espero mais."
Pedro Paixão, in "O mundo é tudo o que acontece"

terça-feira, 7 de abril de 2009

Nostalgia

Apúlia, 2009 © Adelina Silva

"Por que é que fico tão triste quando recordo aqueles tempos? Será que é a nostalgia da felicidade passada – e eu fui feliz nas semanas seguintes, em que realmente trabalhei como um estúpido e consegui passar de ano e nos amámos, e que só mais tarde veio à luz, mas já existia então?
Porquê? Por que razão, quando olhamos para trás, o que era bonito se torna quebradiço, revelando verdades amargas?"
Bernhard Schlink, in “O Leitor”

segunda-feira, 6 de abril de 2009

Regresso

Póvoa de Varzim, 2009 © Adelina Silva

"Esta é a melhor atitude que podemos ter quando partimos. Apetecia-me, estava em forma; só mais tarde, durante a viagem, é que percebemos que são as maiores distâncias que inspiram as maiores ilusões e que viajar sozinho é ao mesmo tempo um prazer e um castigo".

Paul Theroux (& Bruce Chatwin), in “Regresso à Patagónia”

domingo, 5 de abril de 2009

A Isca

Póvoa de Varzim, 2009 © Adelina Silva

Aí o rio correrá murmurando, aquecido
Mais por teus olhos do que pelo sol;
E aí os peixes enamorados ficarão
Suplicando a si próprios poder trair.

Quando tu nadares nesse banho de vida
Cada peixe, dos que todos os canais possuem,
Nadará amorosamente para ti,
Mais feliz por te apanhar, que tu a ele.

Se, sendo vista assim, fores censurada
Pelo Sol, ou Lua, a ambos eclipsarás;
E se me for dada licença para olhar
Dispensarei as suas luzes, tendo-te a ti.
John Donne, in "Poemas Eróticos"

sábado, 4 de abril de 2009

Confidência

Sevilla, 2009 © Adelina Silva

Porque eu cresço para ti
sou eu dentro de ti
que bebe a última gota
e te conduzo a um lugar
sem tempo nem contorno

Porque apenas para os teus olhos
sou gesto e cor
e dentro de ti
me recolho ferido
exausto dos combates
em que a mim próprio me venci
Porque a minha mão infatigável
procura o interior e o avesso
da aparência
porque o tempo em que vivo
morre de ser ontem
e é urgente inventar
outra maneira de navegar
outro rumo outro pulsar
para dar esperança aos portos
que aguardam pensativos


Mia Couto

sexta-feira, 3 de abril de 2009

Ocupado

Póvoa de Varzim, 2009 © Adelina Silva

Neste comboio longo, surdo e quente,
vou lá ao fundo, marco o Ocupado.
Penso em ti, meu amor, em qualquer lado.
Batem-me à porta e digo que está gente.

Pedro Tamen, in "Daniel na Cova dos Leões"

quinta-feira, 2 de abril de 2009

Resposta

Sevilla, 2009 © Adelina Silva


Ontem nasci sem fim, e alimentei-me
nesta mesa que em duas se reparte.
Uma aba no mar, vagante à toa,
trouxe os sabores de ondas, de orlas.
Outra aba na terra mostrou-me as pedras
polidas, úberes, gastas.

Fiama Hasse Pais Brandão

quarta-feira, 1 de abril de 2009

Outro Mundo

Sevilla, 2009 © Adelina Silva

"A diferença de gerações não perdoa. Você, por exemplo, você não escreve para mim. Os autores de hoje têm uma visão do mundo muito diferente de nós. As viagens, que agora são muito facilitadas, transformam as pessoas. É outro mundo, este agora."

Luiz Pacheco
in "Pública", Entrevista,
Sarah Adamapoulos, 28.3.04