sábado, 30 de abril de 2011

Estrela da Tarde

Burgos, 2010 © Adelina Silva

Era a tarde mais longa de todas as tardes que me acontecia
Eu esperava por ti, tu não vinhas tardavas e eu entardecia
Era tarde, tão tarde, que a boca, tardando-lhe o beijo, mordia
Quando à boca da noite surgiste na tarde tal rosa tardia

Quando nós nos olhamos tardamos no beijo que a boca pedia
E na tarde ficamos unidos ardendo na luz que morria
Em nós dois nessa tarde em que tanto tardaste o sol amanhecia
Era tarde demais para haver outra noite, para haver outro dia.



José Carlos Ary dos Santos

quinta-feira, 28 de abril de 2011

Royal Wedding

Londres, 2011 © Adelina Silva

Comparar-te a um dia de verão?
Há mais ternura em ti, ainda assim:
um maio em flor às mãos do furacão,
o foral do verão que chega ao fim.

Por vezes brilha ardendo o olhar do céu;
outras, desfaz-se a compleição doirada,
perde beleza a beleza; e o que perdeu
vai no acaso, na natureza, em nada.

Mas juro-te que o teu humano verão
será eterno; sempre crescerás
indiferente ao tempo na canção;

e, na canção sem morte, viverás:
Porque o mundo, que vê e que respira,
te verá respirar na minha lira.



William Shakespeare, in "Sonetos"

domingo, 24 de abril de 2011

Irreversível


Póvoa de Varzim, 2011 © Adelina Silva


Não medir a altura do sonho.
Não medir a distância de um sorriso.
Quando a espuma das ondas chega à areia
qualquer coisa de irreversível acontece.

Ana Hatherly

quinta-feira, 21 de abril de 2011

Viajo pelo teu perfil

Póvoa de Varzim, 2011 © Adelina Silva


Desenho no mapa o teu perfil
de caravela cósmica. Viajo
por hemisférios tácteis ao encontro
do lastro puro, do contraste
que me revele

e justifique

e baste.


Albano Martins, in «Vocação do Silêncio»

segunda-feira, 18 de abril de 2011

Como uma criança

© Adelina Silva


O silêncio nos invade
quando o teu olhar se afasta
e se despe, em local incerto.

Tu ausente, desamparada, só,
qual criança envergonhada e triste
como uma flor, perdida no deserto.
(...)

João-Maria Nabais

sexta-feira, 15 de abril de 2011

Flutuo

Póvoa de Varzim, 2011 © Adelina Silva

De que céu caído,
oh insólito,
imóvel solitário na onda do tempo?
És a duração,
o tempo que amadurece
num instante enorme, diáfano:
flecha no ar,
branco embelezado
e espaço já sem memória de flecha.
Dia feito de tempo e de vazio:
desabitas-me, apagas
meu nome e o que sou,
enchendo-me de ti: luz, nada.
E flutuo, já sem mim, pura existência.



Octavio Paz, in "Liberdade sob Palavra"


terça-feira, 12 de abril de 2011

E, então, sorriu...

2011 © Adelina Silva



Passava eu na estrada pensando impreciso,
Triste à minha moda.
Cruzou um garoto, olhou-me, e um sorriso
Agradou-lhe a cara toda.
Bem sei, bem sei, sorrirá assim
A um outro qualquer.
Mas então sorriu assim para mim...
Que mais posso eu querer?
Não sou nesta vida nem eu nem ninguém,
Vou sem ser nem prazo...
Que ao menos na estrada me sorria alguém
Ainda que por acaso.


Fernando Pessoa

sábado, 9 de abril de 2011

Ausência real

Vizela, 2010 © Adelina Silva

Não sei que mistério
prende meu coração ao dia de hoje
Tanto, que me parece
que estou ausente da vida
e apenas real nesta paisagem.

Albano Martins, in "Vocação do Silêncio"




segunda-feira, 4 de abril de 2011

O Abismo da Agitação

Magalluf, 2010 © Adelina Silva

Não pretendo exagerar os perigos da agitação. Uma certa quantidade talvez seja saudável, mas como em quase todas as outras coisas, o problema é de ordem quantitativa. Uma dose demasiado pequena pode gerar desejos mórbidos e o abuso pode produzir o esgotamento. Certa capacidade para suportar o aborrecimento é pois essencial a uma vida feliz e isso era uma das coisas que deviam ser ensinadas aos jovens.

Bertrand Russell, in "A Conquista da Felicidade"