quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Coração Acordeão


Sevilha, 2009 © Adelina Silva

Não o amor não tem asas
se tem asas são as mãos
que se enlaçam para a festa
maravilhosa do corpo
e entre elas o coração
coração acordeão

Alexandre O'Neill, in "Coração Acordeão"


domingo, 27 de novembro de 2011

Já não é possível


Lisboa, 2011 © Adelina Silva

Já tudo é tudo. A perfeição dos
deuses digere o próprio estômago.
O rio da morte corre para a nascente.
O que é feito das palavras senão as palavras?

O que é feito de nós senão
as palavras que nos fazem
Todas as coisas são perfeitas de
Nós até ao infinito, somos pois divinos.

Já não é possível dizer mais nada
mas também não é possível ficar calado.
Eis o verdadeiro rosto do poema.
Assim seja feito a mais e a menos.


Manuel António Pina, in "ainda não é o fim, nem o princípio do mundo, calma, é apenas um pouco tarde”


quinta-feira, 24 de novembro de 2011

O Velho Colono


Porto, 2010© Adelina Silva

Sentado no banco cinzento
entre as alamedas sombreadas do parque.
Ali sentado só, àquela hora da tardinha,
ele e o tempo. O passado certamente,
que o futuro causa arrepios de inquietação.
Pois se tem o ar de ser já tão curto,
o futuro. Sós, ele e o passado,
os dois ali sentados no banco de cimento.

(...)

Em redor há todo o mundo e a vida.
Ali está ele, ele e o passado,
sentados os dois no banco de frio cimento.
Ele a sombra e a névoa do olhar.
Ele, a bronquite e o latejar cansado
das artérias. Em volta os beijos húmidos,
as frescas gargalhadas, tintas de Outono
próximo na folhagem e o tempo.

O tempo que cada qual, a seu modo,
vai aproveitando.

Rui Knofli


terça-feira, 22 de novembro de 2011

Versos soltos no Mar


Póvoa de Varzim, 2011© Adelina Silva

36
Inclinei-me para ver o mar. E vi apenas
uma mulher chorando
contra o quarto minguante de uma lua crescente.

37
Mar, andei à tua procura
esse imortal sorriso...
porém não o encontrei.


Vinicius de Moraes,in "Poesia Completa e Prosa"


sexta-feira, 18 de novembro de 2011

Como uma vaca veio residir com os orelhudos


Burgos, 2009© Adelina Silva

Um dia numa floresta um coelho matou um homem. Uma vaca observava esperando que o homem se levantasse. Um insecto rastejou na cara do homem. Uma vaca observava esperando que o homem se levantasse. Uma vaca saltou uma sebe para ver mais de perto como um coelho arruma um homem. Um coelho ataca uma vaca pensando que a vaca veio ajudar o homem. O coelho domina a vaca e arrasta a vaca para a sua toca.
Quando a vaca desperta a vaca pensa, eu queria estar ao cimo da terra indo com o homem para o meu estábulo.

Russel Edson ,in "O Túnel"


quarta-feira, 16 de novembro de 2011

Falaram-me...


Guimarães, 2010 © Adelina Silva

Falaram-me em homens, em humanidade,
Mas eu nunca vi homens nem vi humanidade.
Vi vários homens assombrosamente diferentes entre si,
Cada um separado do outro por um espaço sem homens.


Alberto Caeiro,in "Fragmentos"


sexta-feira, 11 de novembro de 2011

Nascemos para ter asas


Porto, 2011 © Adelina Silva

Nós nascemos para ter asas, meus amigos.
Não se esqueçam de escrever por dentro do peito: nós nascemos para ter asas.
 No entanto, em épocas remotas, vieram com dedos pesados de ferrugem para gastar as nossas asas como se gastam tostões.
 Cortaram-nos as asas para que fôssemos apenas operários obedientes, estudantes atenciosos, leitores ingénuos de notícias sensacionais, gente pouca, pouca e seca.
 Apesar disso, sábios, estudiosos do arco-íris e de coisas transparentes, afirmam que as asas dos homens crescem mesmo depois de cortadas, e, novamente cortadas, de novo voltam a ser.
 Aceitemos esta hipótese, apesar de não termos dela qualquer confirmação prática.
 Por hoje é tudo. Abram as janelas. Podem sair.

José Fanha, in "Cartas de Marear"


quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Ilumina-se a Igreja


Lisboa, 2011 © Adelina Silva

Ilumina-se a igreja por dentro da chuva deste dia,
E cada vela que se acende é mais chuva a bater na vidraça...

Alegra-me ouvir a chuva porque ela é o templo estar aceso,
E as vidraças da igreja vistas de fora são o som da chuva ouvido por dentro ...

O esplendor do altar-mor é o eu não poder quase ver os montes
Através da chuva que é ouro tão solene na toalha do altar...

Soa o canto do coro, latino e vento a sacudir-me a vidraça
E sente-se chiar a água no fato de haver coro...

A missa é um automóvel que passa
Através dos fiéis que se ajoelham em hoje ser um dia triste...
Súbito vento sacode em esplendor maior
A festa da catedral e o ruído da chuva absorve tudo
Até só se ouvir a voz do padre água perder-se ao longe
Com o som de rodas de automóvel...

E apagam-se as luzes da igreja
Na chuva que cessa ...

Fernando Pessoa, in "Cancioneiro"


segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Vistas assim as coisas


Salamanca, 2010 © Adelina Silva

(...)
E vistas assim as coisas fragmentariamente é certo
e a custo na imensidão da desordem
a que terão de ser constantemente arrancadas
— são da máxima importância as Velhas Concepções
pois
a cada momento corremos grandes riscos
desconcertantes e de sinistra estranheza.

Resulta isto dum olhar rápido sobre a cidade desconhecida. Mais
E abstraindo dos versos que neste poema se referem ao mundo humano
vemos que ninguém até hoje se apossou do homem
como frágil véu que nos separa vedados e proibidos.

António Maria Lisboa


sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Out of the box


Zaragoza, 2011 © Adelina Silva

Este mundo não presta, venha outro.
Já por tempo de mais aqui andamos
A fingir de razões suficientes.
Sejamos cães do cão: sabemos tudo
De morder os mais fracos, se mandamos,
E de lamber as mãos, se dependentes.


José Saramago, in "Os Poemas Possíveis"


terça-feira, 1 de novembro de 2011

Redoma


Magaluf, 2011 © Adelina Silva

(…)
Vem-me a angústia
Do limite que nos antagoniza. Vejo a redoma de ar
Que te circunda - o espaço
Que separa os nossos tempos. Tua forma
É outra: bela demais, talvez, para poder
Ser totalmente minha. Tua respiração
Obedece a um ritmo diverso. Tu és mulher.
Tu tens seios, lágrimas e pétalas. À tua volta
O ar se faz aroma. Fora de mim
És pura imagem; em mim
És como um pássaro que eu subjugo, como um pão
Que eu mastigo, como uma secreta fonte entreaberta
Em que bebo, como um resto de nuvem
Sobre que me repouso. Mas nada
Consegue arrancar-te à tua obstinação
Em ser, fora de mim - e eu sofro, amada
De não me seres mais. Mas tudo é nada.
(…)

Vinicius de Moraes, in "Poesia Completa e Prosa"