sexta-feira, 29 de junho de 2012

Há uma linha que separa o olhar

Paris, 2012 © Adelina Silva

Há duas maneiras de olhar as coisas, como há duas maneiras de as não olhar. Ou se olham pondo-nos de fora delas ou pondo-nos dentro delas. Só no segundo caso as vemos bem, porque só então nos vemos mal ou simplesmente nos perdemos a nós de vista. O primeiro ver é o do homem prático, o segundo, o do artista. Um e outro também divergem no modo de não ver as coisas. O primeiro porque simplesmente as não vê; o segundo porque não repara nelas. Ao contrário do que se supõe, o mundo real não existe para o homem prático: o que existe é a sua instrumentalização.

Vergílio Ferreira, in "Conta-Corrente 2"

terça-feira, 26 de junho de 2012

Velha Estrada

Paris, 2012 © Adelina Silva

Depois de atravessar muitos caminhos
Um homem chegou a uma estrada clara e extensa
Cheia de calma e luz.
O homem caminhou pela estrada afora
Ouvindo a voz dos pássaros e recebendo a luz forte do sol
Com o peito cheio de cantos e a boca farta de risos. 
O homem caminhou dias e dias pela estrada longa
Que se perdia na planície uniforme.
Caminhou dias e dias...
Os únicos pássaros voaram
Só o sol ficava
O sol forte que lhe queimava a fronte pálida.
Depois de muito tempo ele se lembrou de procurar uma fonte 
Mas o sol tinha secado todas as fontes.
Ele perscrutou o horizonte
E viu que a estrada ia além, muito além de todas as coisas.
Ele perscrutou o céu
E não viu nenhuma nuvem.
(...)
O homem olhou por um momento a estrada clara e deserta
Olhou longamente para dentro de si
E voltou.

Vinicius de Moraes, in "Poesia Completa e Prosa"

sábado, 23 de junho de 2012

Pêndulo de Foucault

Valencia, 2012 © Adelina Silva


Foi então que vi o Pêndulo.
A esfera, móvel na extremidade de um longo fio fixado à abóbada do coro, descrevia suas amplas oscilações em isócrona majestade.
(...)
Naquele momento, às quatro da tarde de 23 de junho, o Pêndulo amortecia a própria velocidade numa extremidade do plano de oscilação, para recair indolente em direção ao centro, readquirir velocidade a meio do percurso e desferir seus golpes de sabre confidentes no quadrado oculto das forças que o destino lhe apontava. Se eu permanecesse muito tempo, resistente ao passar das horas, a fixar aquela cabeça de pássaro, aquele ápice de lança, aquele elmo emborcado, enquanto desenhava no vazio as suas diagonais, aflorando os pontos opostos de sua astigmática circunferência, teria sido vítima de uma ilusão fabulatória, pois o Pêndulo me levaria a crer que o plano de oscilação teria realizado uma rotação completa, tornando ao ponto de partida, em trinta e duas horas, descrevendo uma elipse achatada - elipse que girasse em torno de seu próprio centro com uma velocidade angular uniforme, proporcional ao seno da latitude.
Umberto Eco, in "O Pêndulo de Foucault"


Valencia, 2012 © Adelina Silva

sexta-feira, 22 de junho de 2012

Aniversário

Gondomar, 2012 © Adelina Silva


No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,
De ser inteligente para entre a família,
E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.
Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.
Quando vim a olhar para a vida, perdera o sentido da vida.
 
Álvaro de Campos, in "Poemas"

quarta-feira, 20 de junho de 2012

À minha volta

Maia, 2012 © Adelina Silva


Olho, olho, e só vejo negrura à minha volta. Fé? Evidentemente... Enquanto há vida, há esperança — lá diz o outro. Mas, francamente: fé em quê? Num mundo que almoça valores, janta valores, ceia valores, e os degrada cinicamente, sem qualquer estremecimento da consciência? Peçam-me tudo, menos que tape os olhos. Bem basta quando a terra mos cobrir! — Ah! mas a humanidade acaba por encontrar o seu verdadeiro caminho — dizem-me duas células ingénuas do entendimento. E eu respondo-lhes assim: Não, o homem não tem caminhos ideais e caminhos de ocasião. O homem tem os caminhos que anda.
 
Miguel Torga, in "Diário (1942)"

segunda-feira, 18 de junho de 2012

Este seu olhar

Maia, 2012 © Adelina Silva


Mas a ilusão quando se desfaz
Dói no coração de quem sonhou
Sonhou demais, ah! se eu pudesse entender
O que dizem os seus olhos
Tom Jobim

quinta-feira, 14 de junho de 2012

Numa estação de Metro

Paris, 2012 © Adelina Silva

A minha juventude passou e eu não estava lá.
Pensava em outra coisa, olhava noutra direcção.
Os melhores anos da minha vida perdidos por distracção!
(...)
Pois tudo era memória, acontecia
há muitos anos, e quem se lembrava
era também memória que passava,
um rosto que entre os outros rostos se perdia.

Agora, vista daqui, da recordação,
a minha vida é uma multidão
onde, não sei quem, em vão procuro
o meu rosto, pétala dum ramo húmido, escuro.
Manuel António Pina, in "Um sítio onde pousar a cabeça"

segunda-feira, 11 de junho de 2012

Claridade dada pelo tempo

Porto, 2010 © Adelina Silva

Deixa-me sentar numa nuvem
a mais alta
e dar pontapés na Lua
que era como eu devia ter vivido
a vida toda
dar pontapés
até sentir um tal cansaço nas pernas
que elas pudessem voar
mas não é possível
que tenho tonturas e quando
olho para baixo
vejo sempre planícies muito brancas
intermináveis
povoadas por uma enorme quantidade
de sombras
(...)
Mário-Henrique Leiria, in "Surreal Abjeccion(ismo)"

sexta-feira, 8 de junho de 2012

Retrato de rapariga

Valencia, 2012 © Adelina Silva

Muito hirta de pé no patamar do sono
Contornando sem pressa a curva de uma artéria
Por mais ocasional que fosse o nosso encontro
dava-me a entender que estava à minha espera
Com um livro na mão com um lenço ao pescoço
uma expressão cansada a palidez inquieta
de quem andasse ao vento ou trouxesse no rosto
em vez de pó-de-arroz um pó de biblioteca
surgia de repente onde sempre estivera
em Zurique em Paris em Liège em Colónia
Por único endereço uma carreira aérea
Mas não sei se era louca ou apenas mitómana
Onde quer que eu a visse uma coisa era certa
Numa rua num bar num museu numa doca
dava-me a entender que estava à minha espera
dava-me a entender que se chamava Europa
David Mourão-Ferreira, in "Obra Poética 1948-1988"

quinta-feira, 7 de junho de 2012

O passado é o presente

Valencia, 2012 © Adelina Silva

Se recordo quem fui, outrem me vejo,
E o passado é o presente na lembrança.
Quem fui é alguém que amo
Porém somente em sonho.
E a saudade que me aflige a mente
Não é de mim nem do passado visto,
Senão de quem habito
Por trás dos olhos cegos.
Nada, senão o instante, me conhece.
Minha mesma lembrança é nada, e sinto
Que quem sou e quem fui
São sonhos diferentes.
Ricardo Reis, in "Odes"

segunda-feira, 4 de junho de 2012

Gente que passa

Valencia, 2012 © Adelina Silva
(...)

Pergunto à gente que passa
por que vai de olhos no chão.
Silêncio é tudo o que tem
quem vive na servidão.
(…)

E o vento não me diz nada
só o silêncio persiste.
Vi minha pátria parada
à beira de um rio triste.

Ninguém diz nada de novo
se notícias vou pedindo
nas mãos vazias do povo
vi minha pátria florindo.
 (...)
Manuel Alegre