segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

É quando um homem quiser

2010 © Adelina Silva

(...)
Tu que inventas ternura e brinquedos para dar
Tu que inventas bonecas e combóios de luar
E mentes ao teu filho por não os poderes comprar
És meu irmão amigo
És meu irmão

Fatias de tristeza em cada alegre bolo-rei
Pões um sabor amargo em cada doce que eu comprei
És meu irmão amigo
És meu irmão

Mas em Maio pode ser
Natal é em Setembro
É quando um homem quiser
Natal é quando nasce uma vida a amanhecer
Natal é sempre o fruto que há no ventre da Mulher
E tu que vês na montra a tua fome que eu não sei
Natal é em Dezembro


Ary dos Santos

terça-feira, 25 de novembro de 2014

O Mapa

Madrid, 2012 © Adelina Silva

Olho o mapa da cidade
Como quem examinasse
A anatomia de um corpo...

(…)


Mário Quintana, in “Apontamentos de História Sobrenatural”


domingo, 9 de novembro de 2014

domingo, 2 de novembro de 2014

Ei-las... as mãos

2012 © Adelina Silva

Aqui estão as mãos.
São os mais belos sinais da terra.
Os anjos nascem aqui:
frescos, matinais, quase de orvalho,
de coração alegre e povoado.

Ponho nelas a minha boca,
respiro o sangue, o seu rumor branco,
aqueço-as por dentro, abandonadas
nas minhas, as pequenas mãos do mundo.

Alguns pensam que são as mãos de deus
— eu sei que são as mãos de um homem,
trémulas barcaças onde a água,
a tristeza e as quatro estações
penetram, indiferentemente.

Não lhes toquem: são amor e bondade.
Mais ainda: cheiram a madressilva.
São o primeiro homem, a primeira mulher.
E amanhece.


Eugénio de Andrade, in "Até Amanhã"


domingo, 19 de outubro de 2014

Pode-se escrever

Póvoa de Varzim, 2009 © Adelina Silva

Pode-se escrever sem ortografia

Pode-se escrever sem sintaxe

Pode-se escrever sem português

Pode-se escrever numa língua sem saber essa língua
Pode-se escrever sem saber escrever
Pode-se pegar na caneta sem haver escrita
Pode-se pegar na escrita sem haver caneta
Pode-se pegar na caneta sem haver caneta
Pode-se escrever sem caneta
Pode-se sem caneta escrever caneta
Pode-se sem escrever escrever plume
Pode-se escrever sem escrever
Pode-se escrever sem sabermos nada
Pode-se escrever nada sem sabermos
Pode-se escrever sabermos sem nada
Pode-se escrever nada
Pode-se escrever com nada
Pode-se escrever sem nada


Pode-se não escrever 

Pedro Oom

sábado, 11 de outubro de 2014

A Ponte

Mérida, 2014 © Adelina Silva


Se me dizem que estás do outro lado

de uma ponte, por estranho que pareça
que estejas do outro lado e me esperes,

eu cruzarei essa ponte.

Diz-me qual é a ponte que separa

tua vida da minha,

em que hora negra, em que cidade chuvosa
em que mundo sem luz está essa ponte,

e eu a cruzarei.

Amalia Bautista

quarta-feira, 1 de outubro de 2014

Conversa Sentimental

Porto, 2010 © Adelina Silva

No velho parque deserto e gelado
Duas formas passaram há bocado.

Com os olhos mortos e os lábios moles,
Mal se ouvem, a custo, as suas vozes.

No velho parque deserto e gelado
Dois espectros evocaram o passado.

— Recordas-te do nosso êxtase antigo?
— Por que razão acha que ainda consigo?

— Bate, ao ouvires meu nome, o coração?
Vês ainda a minha alma em sonhos? — Não.

— Ah! bons tempos de prazer indizível
Unindo as nossas bocas! — É possível.

— Como era azul, o céu, e grande a esperança!
— Mas é prò negro céu que hoje se lança.

Lá caminhavam pelas aveias loucas
E só a noite ouviu as suas bocas.


Paul Verlaine, in "Festas Galantes"