terça-feira, 26 de março de 2013

Não voltes hoje muito tarde

Porto, 2012 ©  Adelina Silva

(...)
«Percebo, já são horas.
O trabalho... Bem sei. Não faz mal. Logo,
ao regressares, me contarás então o que fizeste.
Espero por ti. Não voltes hoje muito tarde.

Gostava, sabes, gostava outra vez
de voltar a estar contigo um bocadinho.
Não te demores muito. Espero por ti.»
Mas foi-te, mãe, impossível aguardar.

J. M. Fonollosa

sexta-feira, 22 de março de 2013

Que há para lá do Sonhar?

Roma, 2013 ©  Adelina Silva

Céu baixo, grosso, cinzento
e uma luz vaga pelo ar
chama-me ao gosto de estar
reduzido ao fermento
do que em mim a levedar
é este estranho tormento
de me estar tudo a contento,
em todo o meu pensamento
ser pensar a dormitar.

Mas que há para lá do sonhar?

Vergílio Ferreira, in "Conta-Corrente 1"

terça-feira, 19 de março de 2013

As escadas são para descer

Roma, 2013 ©  Adelina Silva

(...)
O melhor
Mesmo
É fechar os olhos
E pensar numa outra coisa...
Pensa, pensa
- o quanto antes!
Naquelas podres escadas de madeira das casas pobres
-escurinho dos teus primeiros aconchegos...
Pensa em cascatas de risos
Escada a baixo
De crianças deixando a escola...
Pensa na escada do poema
Que tu
comigo
vem descendo
agora...
(Hoje em dia todas as escadas são para descer)
(...)

Mário Quintana, in "Apontamentos de História Sobrenatural"

quarta-feira, 13 de março de 2013

Não sei caminhos de cor

Bilbao, 2012 ©  Adelina Silva

Que ninguém me peça esse andar certo de quem sabe
o rumo e a hora de o atingir,
a tranquilidade de quem tem na mão o profetizado
de que a tempestade não lhe abalará o palácio,
a doçura de quem nada tem a regatear,
o clamor dos que nasceram com o sangue a crepitar.

Na minha vida nem sempre a bússola se atrai ao mesmo
norte.
Que ninguém me peça nada. Nada.
Deixai-me com o meu dia que nem sempre é dia,
com a minha noite que nem sempre é noite
como a alma quer.

Não sei caminhos de cor.

Fernando Namora, in "Mar de Sargaços"

segunda-feira, 11 de março de 2013

Divinal


Póvoa de Varzim, 2013 ©  Adelina Silva

"Refugia-te na Arte" diz-me Alguém
"Eleva-te num vôo espiritual,
Esquece o teu amor, ri do teu mal,
Olhando-te a ti própria com desdém.

Só é grande e perfeito o que nos vem
Do que em nós é Divino e imortal!
Cega de luz e tonta de ideal
Busca em ti a Verdade e em mais ninguém!"
E saudava a matéria que passava
Liberta para sempre da alma extinta.
(...)

Florbela Espanca, in "Livro de Sóror Saudade"

sábado, 9 de março de 2013

Momento num Café

2013 ©  Adelina Silva

Quando o enterro passou
Os homens que se achavam no café
Tiraram o chapéu maquinalmente
Saudavam o morto distraídos
Estavam todos voltados para a vida
Absortos na vida
Confiantes na vida

Um no entanto se descobriu num gesto largo e demorado
Olhando o esquife longamente
Este sabia que a vida é uma agitação feroz e sem finalidade
Que a vida é traição
E saudava a matéria que passava
Liberta para sempre da alma extinta.


Manuel Bandeira

terça-feira, 5 de março de 2013

Sombra pensada

Roma, 2013 ©  Adelina Silva

Deixai-me com a sombra
Pensada na parede
Deixai-me com a luz
Medida no meu ombro
Em frente do quadrado
Nocturno da janela

Sophia de Mello Breyner, in "Geografia"

sexta-feira, 1 de março de 2013

Regresso

Porto, 2013 ©  Adelina Silva


Como quem, vindo de países distantes fora de
si, chega finalmente aonde sempre esteve
e encontra tudo no seu lugar,
o passado no passado, o presente no presente,
assim chega o viajante à tardia idade
em que se confundem ele e o caminho.

Entra então pela primeira vez na sua casa
e deita-se pela primeira vez na sua cama.
Para trás ficaram portos, ilhas, lembranças,
cidades, estações do ano.
E come agora por fim um pão primeiro
sem o sabor de palavras estrangeiras na boca.

Manuel António Pina, in "Como se desenha uma casa"