quinta-feira, 30 de agosto de 2012

Espelho oscilante

Bilbao, 2012 © Adelina Silva

Ninguém compreende outro. Somos, como disse o poeta, ilhas no mar da vida; corre entre nós o mar que nos define e separa. Por mais que uma alma se esforce por saber o que é outra alma, não saberá senão o que lhe diga uma palavra - sombra disforme no chão do seu entendimento.
Amo as expressões porque não sei nada do que exprimem. Sou como o mestre de Santa Marta: contento-me com o que me é dado. Vejo, e já é muito. Quem é capaz de entender? Talvez seja por este cepticismo do inteligível que eu encaro de igual modo uma árvore e uma cara, um cartaz e um sorriso. (Tudo é natural, tudo artificial, tudo igual.)
Tudo o que vejo é para mim o só visível, seja o céu alto azul de verde branco da manhã que há-de vir, seja o esgar falso em que se contrai o rosto de quem está a sofrer perante testemunhas a morte de quem ama.
Bonecos, ilustrações, páginas que existem e se voltam. Meu coração não está neles nem quase minha atenção, que os percorre de fora, como uma mosca por um papel.
Sei eu sequer se sinto, se penso, se existo? Nada: só um esquema objectivo de cores, de formas, de expressões de que sou o espelho oscilante por vender inútil.

Fernando Pessoa, in "O Livro do Desassossego"

sábado, 25 de agosto de 2012

Partes de um todo

Léon, 2012 © Adelina Silva

Esta tarde, sentado num banco do jardim,
tentava ler um livro difícil
enquanto esperava por ti.
O livro tornava mais dura, mais penosa, a espera.
Então levantei os olhos das páginas,
pousei o livro, vi um homem novo
aproximar-se e passar à minha frente
com um saco de plástico
com maçãs vermelhas numa das mãos
e uma caixa de cartão, com ovos, na outra.
O saco de plástico era transparente
e revelava nitidamente o esplendor e a forma
perfeita das maçãs, todas muito juntas
como partes de um todo.
Não consegui deixar de as olhar,
e tu chegaste logo de seguida.
Só agora, depois do jantar
e da loiça lavada, me lembrei do livro
que ficou no banco do jardim.

Luís Filipe Parrado, in "Resumo - a poesia em 2011"

terça-feira, 21 de agosto de 2012

Corpo | Arquitectura

Bilbao, 2012 © Adelina Silva

Pendentes como frutos ou moluscos
Da intersecção convexa das colunas
Alongam-se volume adivinhado
Nos véus retensos que os desenham soltos.
Os fustes se articulam de joelhos
Ancas artelhos metatarso e dedos.
E no de se mover arquitectura
Desnudo o templo se promete ampliado
E penetrante e ardente quando a vida
Que é suco em fruto endurecer de sangue.

Outras colunas se entreabrem já
Humedecidas no seu friso oculto
A tanta imagem prometida. E só
Os dorsos das estátuas se não findam.
De uma cintura opostamente os globos
Se erguem metades lado a lado rijos.
Lisos na curva os que de baixo avançam
E pontiagudos no seu eixo os outros
Que acima opostamente se arredondam
E em curva se diluem suaves
Na curvatura larga que irradia
De um ponto refundado até uma linha
Em que outra curva enegrecida avança.
Sob esta – aonde se bifurca o fuste –
Em lábios se abre vertical um friso
Internamente prolongado para
O duro eixo do templo receber
Que a horizontal cariátide sustenta.

Na noite cavernosa a que se aponta
E em que mergulha e se desliza e volta
Quanto se move do que as partes une
De oscilações o templo e o seu suporte –
Trementes superfícies e rebordos
Se roçam se estrangulam se recravam
Até que imóveis o edifício jorra
Adentro de si mesmo um fecho líquido
Selando a abóbada nocturna e quente
Da cripta profunda. Ou não selando.
Dentro se funde ou não se funde um ovo
Com desse líquido o pequeno acaso.
No campo se separam em pedaços
Colunas arcos tímpanos e frisos.



Jorge de Sena 

domingo, 19 de agosto de 2012

Ontem à tarde

Bilbao, 2012 © Adelina Silva

Ontem à tarde um homem das cidades
Falava à porta da estalagem.
Falava comigo também.
Falava da justiça e da luta para haver justiça
E dos operários que sofrem,
E do trabalho constante, e dos que têm fome,
E dos ricos, que só têm costas para isso.
E, olhando para mim, viu-me lágrimas nos olhos
E sorriu com agrado, julgando que eu sentia
O ódio que ele sentia, e a compaixão
Que ele dizia que sentia.
(...)
Eu no que estava pensando
Quando o amigo de gente falava
(E isso me comoveu até às lágrimas),
Era em como o murmúrio longínquo dos chocalhos
A esse entardecer
(...)
E o homem calara-se, olhando o poente.
Mas que tem com o poente quem odeia e ama?


Alberto Caeiro, in "O Guardador de Rebanhos - Poema XXXII"

segunda-feira, 13 de agosto de 2012

Amor Pacífico e Fecundo

Magaluf, 2012 © Adelina Silva

Não quero amor
que não saiba dominar-se,
desse, como vinho espumante,
que parte o copo e se entorna,
perdido num instante.

Dá-me esse amor fresco e puro
como a tua chuva,
que abençoa a terra sequiosa,
e enche as talhas do lar.
Amor que penetre até ao centro da vida,
e dali se estenda como seiva invisível,
até aos ramos da árvore da existência,
e faça nascer
as flores e os frutos.
Dá-me esse amor
que conserva tranquilo o coração,
na plenitude da paz!

Rabindranath Tagore, in "O Coração da Primavera"

sexta-feira, 10 de agosto de 2012

O surfista

Magaluf, 2012 © Adelina Silva

Equilibrado sobre a folha
que desliza como uma lágrima
pela face daquela onda,
a mais esperada, a mais alta,

ama esse instável chão do mundo
que lhe falta a cada segundo,

e as paredes de transparência,
que almas e corpos atravessam
ao sol da súbita inocência:

na praia, fêmeas o esperando,
como um presente do oceano.

Alberto da Cunha Melo, in "Dois caminhos e uma oração"