sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

O último dia do tempo

Photobucket
2010 © Adelina Silva

O último dia do tempo
não é o último dia de tudo.
Fica sempre uma franja de vida
onde se sentam dois homens.
Um homem e seu contrário,
uma mulher e seu pé,
um corpo e sua memória,
um olho e seu brilho,
uma voz e seu eco,
e quem sabe até se Deus...

Recebe com simplicidade este presente do acaso.
Mereceste viver mais um ano.
Desejarias viver sempre e esgotar a borra dos séculos.
Teu pai morreu, teu avô também.
Em ti mesmo muita coisa já expirou, outras espreitam a morte,
mas estás vivo. Ainda uma vez estás vivo,
e de copo na mão
esperas amanhecer.

O recurso de se embriagar.
O recurso da dança e do grito,
o recurso da bola colorida,
o recurso de Kant e da poesia,
todos eles... e nenhum resolve.

Surge a manhã de um novo ano.


Carlos Drummond de Andrade, in “A Rosa do Povo”

segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Palavras de Azevinho

Gondomar, 2010 © Adelina Silva

Natal de malva
e linho
de ternura mosqueada

Onde no peito
faz ninho
e no coração se alaga

Na entrega e no refúgio
de memória deslumbrada
entre o sonhado e o lume

Natal no seu aprisco
perfumes
de seda e cassa

Pela calada do tempo
da infância
sendo imagem

Com palavras
de azevinho

e nas costas duas asas

Maria Teresa Horta (Natal de 2008)

quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

Falavam-me de... amor

Porto, 2010 © Adelina Silva

Quando um ramo de doze badaladas
se espalhava nos móveis e tu vinhas
solstício de mel pelas escadas
de um sentimento com nozes e com pinhas,

menino eras de lenha e crepitavas
porque do fogo o nome antigo tinhas
e em sua eternidade colocavas
o que a infância pedia às andorinhas.

Depois nas folhas secas te envolvias
de trezentos e muitos lerdos dias
e eras um sol na sombra flagelado.

O fel que por nós bebes te liberta
e no manso natal que te conserta
só tu ficaste a ti acostumado.


Natália Correia, in “O Dilúvio e a Pomba”

domingo, 19 de dezembro de 2010

Ai que Sábados mais profundos!

Porto, 2010 ©Adelina Silva

Ai que sábados irritantes
armados de bocas e pernas,
desenfreadas, sempre a correr,
bebendo mais do que é a conta:
não protestemos contra o bulício
que não quer andar connosco.
Pablo Neruda, in “Antologia Breve

domingo, 12 de dezembro de 2010

Choverá?

Porto, 2010 © Adelina Silva
pelas paredes cheira ainda à tua pele cutânea.

mas desde que te foste estar aqui é oco,
cansativo, uma espera. E às vezes (como se
tivéssemos chorado) respirar custa.

sobretudo nada apetece.
sair para a rua? Ir então em frente a repetir
os passos, passear nas avenidas a espaçar as
horas – dispersar a espera?

tudo cinzento. Choverá?
aqui é que não fico. No quarto onde dormimos
o espaço sobra, e cada coisa já morreu ou está
a mais.

em toda a casa uma violência subterrânea:
a tua ausência

João Habitualmente

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

Navio de Espelhos

Póvoa de Varzim, 2010 © Adelina Silva

O navio de espelhos
não navega cavalga

Seu mar é a floresta
que lhe serve de nível

Ao crepúsculo espelha
sol e lua nos flancos

Por isso o tempo gosta
de deitar-se com ele

Os armadores não amam
a sua rota clara

(Vista do movimento
dir-se-ia que pára)

(…)

Toda a nave cavalga
(como no espaço os astros)

Do princípio do mundo

até ao fim do mundo
Mário Cesariny

sábado, 4 de dezembro de 2010

Saudade

Valladolid, 2010 © Adelina Silva

Saudade é solidão acompanhada,
é quando o amor ainda não foi embora,
mas a amada já...
Saudade é amar um passado
que ainda não passou,
é recusar um presente que nos machuca,
é não ver o futuro que nos convida...
Saudade é sentir que existe
o que não existe mais...
Saudade é o inferno dos que perderam,
é a dor dos que ficaram para trás,
é o gosto de morte na boca dos que continuam...
Só uma pessoa no mundo deseja sentir saudade:
aquela que nunca amou.
E esse é o maior dos sofrimentos:
não ter por quem sentir saudade,
passar pela vida e não viver.
O maior dos sofrimentos é nunca ter sofrido.
Pablo Neruda

terça-feira, 30 de novembro de 2010

Tempo Revisitado

Póvoa de Varzim, 2009 © Adelina Silva
O tempo a que sempre regressamos
e nos visita um instante

O tempo que depois destruímos
construímos e alimentamos se nos
alimenta

O tempo onde a luz buscamos e
a morte sempre
encontramos
Casimiro de Brito, in "Mesa do Amor"


quarta-feira, 24 de novembro de 2010

O Porto

Póvoa de Varzim, 2010 © Adelina Silva
Um porto é uma estância encantadora para um espírito cansado das lutas da vida. A vastidão do céu, a arquitectura móvel das nuvens, as tonalidades mutantes do mar, o cintilar dos faróis, são um prisma maravilhosamente próprio para divertir os olhos sem nunca os aborrecer. As formas esguias dos navios, de enxárcia complicada, aos quais o marulho imprime oscilações harmoniosas, servem para conservar na alma o gosto pelo ritmo e pela beleza. E há sobretudo, também, uma espécie de prazer misterioso e aristocrático para quem já não tem curiosidade nem ambição, em contemplar, inclinado no miradouro ou debruçado junto ao molhe, todos os movimentos dos que partem e dos que retornam, dos que ainda têm a força de querer, o desejo de viajar ou de enriquecer.
Charles Baudelaire, in "Pequenos Poemas e Prosas"

terça-feira, 23 de novembro de 2010

Por entre bocejos

Porto, 2010 © Adelina Silva

(...)
Entanto eis-me sozinho no Café:
De manhã, como sempre, em bocejos amarelos.
De volta, as mesas apenas - ingratas
E duras, esquinadas na sua desgraciosidade
Bocal, quadrangular e livre-pensadora...
Mário de Sá-Carneiro

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

E o dia flui....

Póvoa de Varzim, 2010 © Adelina Silva


Giram as estações e os dias,
Giram os céus, rápidos ou lentos,
As fábulas errantes das nuvens,
De campos de jogos e campos de batalha
De instáveis nações de reflexos,
Reinos de vento que dissipa o vento: nos dias serenos o espaço palpita,
Os sons são corpos transparentes, os ecos são visíveis, ouvem-se os silêncios.
Manancial de presenças, o dia flui soberbo nas suas ficções
Octávio Paz, in “Pasado en Claro”

sábado, 13 de novembro de 2010

O mundo é bom, o espaço é muito triste...

Viana do Castelo, 2010 © Adelina Silva

(...)
De que te vale o espaço se te cansa?
Quanto mais sobes mais o espaço avança...
Desce ao chão, águia audaz, que a noite é fria.

Volta, ó alma, ao lugar de onde partiste
O mundo é bom, o espaço é muito triste...

Talvez tu possas ser feliz um dia.

Vinicius de Moraes, in "Poesia Completa e Prosa"

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Science-Fiction I

Batalha, 2010 © Adelina Silva

Talvez o nosso mundo se convexe
Na matriz positiva doutra esfera.

Talvez no interspaço que medeia
Se permutem secretas migrações.
Talvez a cotovia, quando sobe,
Outros ninhos procure, ou outro sol.
Talvez a cerva branca do meu sonho
Do côncavo rebanho se perdesse.
Talvez do eco dum distante canto
Nascesse a poesia que fazemos.
Talvez só amor seja o que temos,
Talvez a nossa coroa, o nosso manto.

José Saramago, in “Os Poemas Possíveis”

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

O Gato

Porto, 2010 © Adelina Silva

Há dias, sabes, em que gostava de ser como o gato e que me tocasses sem desejar encontrar quaisquer sentimentos a não ser o que se exprime num espreguiçar muito lento – um vago agradecimento? – e que depois me deixasses deitado no sofá sem que nada pudesses levar da minha alma pois nem saberias o que dela roubar.

Pedro Paixão, in “Viver Todos os Dias Cansa”

sábado, 30 de outubro de 2010

Inventemos

Sevilha, 2009 © Adelina Silva

"Inventemos uma esplanada uma pequena pátria um pomar longe das praças engalanadas de puro comércio. Senta-te no banco de pedra e nasce."

Alberto Serra, in "O Aparo do Demónio"

quinta-feira, 28 de outubro de 2010

A Verdade da Mentira

Burgos, 2010 © Adelina Silva

No teatro, a verdade esquiva-se sempre. Nunca a encontramos por completo, mas é forçoso procurá-la. Essa busca é claramente aquilo que guia os nossos esforços. É essa a nossa tarefa. Na maioria das vezes é no escuro que tropeçamos na verdade, esbarramos nela, ou vislumbramos uma imagem ou uma forma que parece corresponder à verdade, muitas vezes sem nos darmos conta disso. Mas a verdade verdadeira é que, na arte do teatro, não há nunca uma verdade única que possamos encontrar. Há muitas. Estas verdades desafiam-se mutuamente, fogem, reflectem-se, ignoram-se, espicaçam-se, são insensíveis umas às outras. Às vezes pensamos que temos a verdade de um momento na mão, e depois ela escapa-se-nos por entre os dedos e desaparece.

Harold Pinter, in "Discurso de Aceitação do Prémio Nobel"

domingo, 24 de outubro de 2010

Quem vai à guerra...

Burgos, 2010 © Adelina Silva

Brigar é simples.
Chame-se covarde ao contendor.
Ele olhe nos olhos e:
— Repete.
Repita-se: — Covarde.
Então ele recite, resoluto:
— Puta que pariu.
— A sua, fio da puta.

Cessem as palavras. Bofetão.
Articulem-se os dois no braço a braço.
Soco de lá soco de cá
pontapé calço rasteira
unha, dente, sérios, aplicados
na honra de lutar: um corpo só de dois que se embolaram.

Dure o tempo que durar
a resistência de um.
Não desdoura apanhar, mas que se cumpra
a lei da briga, simples.

Carlos Drummond de Andrade, in ”Boitempo”

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

A minha terra

Porto, 2010 © Adelina Silva


Nós, os Portugueses pertencemos à Humanidade, à Europa e a Portugal. Não somos três coisas distintas, senão uma única, inteira, a nossa.
Cada indivíduo não pode chegar até si mesmo senão através dessas três unidades a que pertence: o mundo, aquela das cinco partes do mundo onde está a sua terra, e a sua terra. A terra de cada indivíduo não está limitada pelas legítimas fronteiras físicas e políticas do seu próprio território, é além disso um pedaço determinado de uma quinta parte do mundo inteiro. E o indivíduo está tão longe de si mesmo que para chegar até si tem primeiro que dar a sua volta ao mundo, completa, até ao ponto de partida. E todo aquele que queira encontrar dentro de si mesmo a sua própria personalidade, ficará romanticamente sozinho no meio das multidões, na mais terrível solidão de todos os tempos, uma solidão onde o próprio deserto está cheio de arranha-céus e as ruas inundadas de gente!
O indivíduo nunca pertenceu a si mesmo. Pertence em absoluto à sua colectividade. E a sua colectividade é a sua própria Terra e mais aquela das cinco partes do mundo onde está a sua terra e mais o mundo inteiro também.


Almada Negreiros, in "Ensaios"

sábado, 16 de outubro de 2010

Imagens Proibidas

Valladolid, 2010 © Adelina Silva

Aqui deste lado não poderias ser quem eras, quem serias. Fugiste de um mundo pequenino, de uma asfixia. Agora de ti nada sei: de que te alimentas, quem amas, onde dormes. Nem desejo saber. Basta lembrar-me de ti como quem relembra uma música. Eu quis-te com uma violência que desconhecia. Tu levaste-me por paragens inóspitas, repletas de perigos. Por ti senti pavor. Por ti senti raiva. Por ti senti desespero. Entre nós havia sempre uma impossibilidade, um vazio. Tu eras em tudo um bicho indomável. Nunca te oferecias. Era preciso ir buscar-te aos lugares mais secretos. Tive de inventar a fotografia para te capturar em imagens proibidas.

Pedro Paixão, in “Imagens Proibidas”

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Aldeia

Óbidos, 2008 © Adelina Silva





As pedras são tempo
O vento
séculos de vento
As árvores são tempo
as pessoas são pedras
O vento
volta-se sobre si mesmo e enterra-se
no dia de pedra

Não há água mas os olhos brilham

Octávio Paz, in "Antologia Poética"

sábado, 9 de outubro de 2010

Ausência

Burgos, 2010 © Adelina Silva

Falo-te através das cidades
Falo-te através das planícies
A minha boca repousa na tua almofada
Os dois lados da parede opõem-se
À minha voz que te reconhece
Falo-te de eternidade

Ó cidades lembranças de cidades
Cidades envoltas nos nossos desejos
Cidades precoces e tardias
Cidades fortificadas cidades íntimas
Despojadas de todos os seus pedreiros
Dos seus pensadores dos seus fantasmas
(…)
E sobre o meu corpo o teu corpo estende
A toalha do seu espelho transparente.




Paul Éluard, in “Últimos Poemas de Amor”

terça-feira, 5 de outubro de 2010

Evolução

Burgos, 2010 © Adelina Silva
Museu da Evolução Humana


Fui rocha em tempo, e fui no mundo antigo
Tronco ou ramo na incógnita floresta...
Onda, espumei, quebrando-me na aresta
Do granito, antiquíssimo inimigo...

Rugi, fera talvez, buscando abrigo
Na caverna que ensombra urze e giesta;
O, monstro primitivo, ergui a testa
No limoso paúl, glauco pascigo...

Hoje sou homem, e na sombra enorme
Vejo, a meus pés, a escada multiforme,
Que desce, em espirais, da imensidade...

Interrogo o infinito e às vezes choro...
Mas estendendo as mãos no vácuo, adoro
E aspiro unicamente à liberdade.

Antero de Quental, in "Sonetos"

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Onde estou eu? (Versão Where is Wally?)

Barcelona, 2008 © Adelina Silva

Isto de um homem se sentir só, à saída
do trabalho, do cinema, ao ir pra casa…

Saber que ninguém espera que cheguemos,
para alegrar-se ao ver-nos, ou rechaçar-nos,
torna inimiga, deserta
e inóspita a mais povoada rua.

(…)

E aqui, entre tanta gente, na cidade,
sentimos que nada interessamos a ninguém.


J. M. Fonollosa, in “Cidade do Homem: New York”

domingo, 19 de setembro de 2010

Os actos

Santiago de Compostela, 2009 © Adelina Silva

Os nossos actos transformam-nos; em cada um dos nossos actos se exercem certas forças - enquanto que noutros, não - forças essas que assim são transitoriamente ignoradas; e sempre uma paixão se afirma em detrimento doutras paixões, às quais retira forças. Os nossos actos marcadamente habituais acabam por formar em redor de nós como que um edifício sólido; açambarcam as nossas forças de tal modo, que tornam difícil um desvio de intenções. Acontece também que uma abstenção habitual acaba por transformar o homem. Até pela cara se consegue adivinhar quem é um homem que se tem vencido a si próprio diariamente, ou quem é um homem que se entrega com passividade ao dia a dia. A primeira consequência da acção, é ser ela a edificar-nos, até fisicamente.

Friedrich Nietzsche, in "A Vontade de Poder"

terça-feira, 14 de setembro de 2010

Momento que passa

Bombarral, 2010 © Adelina Silva

Vive o instante que passa. Vive-o intensamente até à última gota de sangue. É um instante banal, nada há nele que o distinga de mil outros instantes vividos. E no entanto ele é o único por ser irrepetível e isso o distingue de qualquer outro. Porque nunca mais ele será o mesmo nem tu que o estás vivendo. Absorve-o todo em ti, impregna-te dele e que ele não seja pois em vão no dar-se-te todo a ti. Olha o sol difícil entre as nuvens, respira à profundidade de ti, ouve o vento. Escuta as vozes longínquas de crianças, o ruído de um motor que passa na estrada, o silêncio que isso envolve e que fica. E pensa-te a ti que disso te apercebes, sê vivo aí, pensa-te vivo aí, sente-te aí. E que nada se perca infinitesimalmente no mundo que vives e na pessoa que és. Assim o dom estúpido e miraculoso da vida não será a estupidez maior de o não teres cumprido integralmente, de o teres desperdiçado numa vida que terá fim.

Vergílio Ferreira, in "Conta-Corrente IV"

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

À deriva

Póvoa de Varzim, 2010 © Adelina Silva


Vivemos num tempo que se sente fabulosamente capaz de realizar, porém não sabe o que realizar. Domina todas as coisas, mas não é dono de si mesmo. Sente-se perdido na sua própria abundância. Com mais meios, mais saber, mais técnica do que nunca, afinal de contas o mundo actual vai como o mais infeliz que tenha havido: puramente à deriva.


Ortega y Gasset, in "A Rebelião das Massas"

sexta-feira, 3 de setembro de 2010

Liberdade é saber dizer NÃO

Póvoa de Varzim, 2010 © Adelina Silva

(...)

Diz NÃO mesmo à igualdade, se ela é apenas um modo de te nivelarem pelo mais baixo e não pelo mais alto que existe também em ti. Porque ser igual na miséria e em toda a espécie de degradação não é ser promovido a homem mas despromovido a animal.

E é do NÃO ao que te limita e degrada que tu hás-de construir o SIM da tua dignidade.

Vergílio Ferreira, in “Conta-Corrente 1”

Sugestão Musical
Joe Cocker - When a Woman Cries

sábado, 28 de agosto de 2010

We no speak...

Apúlia, 2010 © Adelina Silva

Pessoas com poucas capacidades não conseguirão realmente assimilar com facilidade uma língua estrangeira: embora aprendam as suas palavras, empregam-nas apenas no significado do equivalente aproximado da sua língua materna e continuam a manter as construções e frases próprias desta última. Com efeito, esses indivíduos não conseguem assimilar o espírito da língua estrangeira, que depende essencialmente do facto do seu pensamento não se dar por meios próprios, mas, em grande parte, de ser emprestado pela língua materna, cujas frases e locuções habituais substituem os seus próprios pensamentos. Eis, portanto, a razão de eles sempre se servirem, também na própria língua, de expressões idiomáticas desgastadas, combinando-as de modo tão inábil, que logo se percebe quão pouco se dão conta do seu significado e quão pouco todo o seu pensamento supera as palavras, de modo que tudo se reduz a um palratório de papagaios. Pela razão oposta, a originalidade das locuções e a adequação individual de cada expressão usada por alguém são o sintoma inequivocável de um espírito preponderante.

Arthur Schopenhauer, in “Da Língua e das Palavras”


Sugestão Musical
Yolanda Be Cool & Dcup - We No Speak Americano

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Repouso

Bombarral, 2010 © Adelina Silva

A mente não se deve manter sempre na mesma intenção ou tensão, antes deve dar-se também à diversão. (...) O nosso espírito deve relaxar: ficará melhor e mais apto após um descanso. Tal como não devemos forçar um terreno agrícola fértil com uma produtividade ininterrupta que depressa o esgotaria, também o esforço constante esvaziará o nosso vigor mental, enquanto um curto período de repouso restaurará o nosso poder. O esforço continuado leva a um tipo de torpor mental e letargia. Nem os desejos dos homens devem encaminhar-se tão depressa nesta direcção se o desporto e o jogo os envolvem numa espécie de prazer natural; embora uma repetida prática destrua toda a gravidade e força do nosso espírito. Afinal, o sono também é essencial para nos restaurar, mas se o prolongássemos constantemente, dia e noite, seria a morte.

Séneca, in "Da Brevidade da Vida"
Sugestão Musical
Britney Spears - Everytime (Instrumental)

sábado, 21 de agosto de 2010

Sobre todas as coisas

Póvoa de Varzim, 2010 © Adelina Silva

Sentado a teu lado reparando nas nuvens
Reparo nelas melhor …
Tu não me tiraste a Natureza …
Tu não me mudaste a Natureza …
Trouxeste-me a Natureza para ao pé de mim.
Por tu existires vejo-a melhor, mas a mesma,
Por tu me amares, amo-a do mesmo modo, mas mais,
Por tu me escolheres para te ter e te amar,
Os meus olhos fitam-na mais demoradamente
Sobre todas as coisas

Não me arrependo do que fui outrora
Porque ainda o sou.
Só me arrependo de outrora te não ter amado.
Alberto Caeiro
Sugestão Musical
Michael Nyman - Time Lapse

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

O Anjo de Pernas Tortas

Apúlia, 2010 © Adelina Silva

A um passe de Didi, Garrincha avança
Colado o couro aos pés, o olhar atento
Dribla um, dribla dois, depois descansa
Como a medir o lance do momento.

Vem-lhe o pressentimento; ele se lança
Mais rápido que o próprio pensamento,
Dribla mais um, mais dois; a bola trança

Feliz, entre seus pés – um pé de vento!

Num só transporte, a multidão contrita
Em ato de morte se levanta e grita
Seu uníssono canto de esperança.

Garrincha, o anjo, escuta e atende: Gooooool!

É pura imagem: um G que chuta um O
Dentro da meta, um L. É pura dança!

Vinicius de Moraes

quinta-feira, 12 de agosto de 2010

Teu Olhar

© Adelina Silva

Teus olhos são a pátria do relâmpago e da lágrima,
silêncio que fala,
tempestades sem vento, mar sem ondas,
pássaros presos, douradas feras adormecidas,
topázios ímpios como a verdade,
outono numa clareira de bosque onde a luz canta no ombro
duma árvore e são pássaros todas as folhas,
praia que a manhã encontra constelada de olhos,
cesta de frutos de fogo,
mentira que alimenta,
espelhos deste mundo, portas do além,
pulsação tranquila do mar ao meio-dia,
universo que estremece,
paisagem solitária.

Octavio Paz, in "Liberdade sob Palavra"


Sugestão Musical
Rodrigo Leão - Gente Diferente

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Vencer o Medo

Magalluf, 2010 © Adelina Silva

Parecemos estar hoje animados quase exclusivamente pelo medo. Receamos até aquilo que é bom, aquilo que é saudável, aquilo que é alegre. (…) Tudo aquilo a que fechamos os olhos, tudo aquilo de que fugimos, tudo aquilo que negamos, denegrimos ou desprezamos, acaba por contribuir para nos derrotar. O que nos parece sórdido, doloroso, mau, poderá tornar-se numa fonte de beleza, alegria e força, se o enfrentarmos com largueza de espírito. Todos os momentos são momentos de ouro para os que têm a capacidade de os ver como tais. A vida é agora, são todos os momentos, mesmo que o mundo esteja cheio de morte. A morte só triunfa ao serviço da vida.

Henry Miller, in "O Mundo do Sexo"

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Maquin'arte

Magalluf, 2010 © Adelina Silva

Uma máquina é pura, desde a inocência com que se nos revela, ou seja precisamente a exterioridade em que se nos dá. Mas uma inocência é uma abertura à realização do que o não é. O destino de uma máquina tem o destino que lhe dermos, e um dos piores é o finalizá-la nela própria. Assim e para lá da criação do seu próprio espaço, por uma máquina, da alteração que a sua própria existência em nós promove, todo o problema se decide no lugar-comum desta alternativa: remeter a máquina ao homem ou degradar o homem à máquina.

Vergílio Ferreira, in "Invocação ao Meu Corpo"

quinta-feira, 29 de julho de 2010

Elogio ao Vício

Magalluf, 2010 © Adelina Silva

Admiro os viciados. Num mundo em que está toda a gente à espera de uma catástrofe total e aleatória ou de uma doença súbita qualquer, o viciado tem o conforto de saber aquilo que quase de certeza estará à sua espera ao virar da esquina. Adquiriu algum controlo sobre o seu destino final e o vício faz com que a causa da sua morte não seja uma completa surpresa.
De certo modo, ser um viciado é uma coisa bastante proactivista. Um bom vício retira à morte a suposição. Existe mesmo uma coisa que é planear a tua fuga.

Chuck Palahniuk, in "Asfixia"

quarta-feira, 21 de julho de 2010

O Velho e o Pássaro

Porto, 2010 © Adelina Silva

- Que idade tens? - perguntou-lhe o velho. - É a tua primeira viagem?
O pássaro fitou-o, enquanto ele lhe falava. Estava tão cansado que nem examinava a linha, e tremia nas delicadas patas enclavinhadas nela.
- Está tesa, tesa demais - disse o velho. - Não devias estar tão cansado, depois de uma noite sem vento. No que estarão dando os pássaros? "Os falcões, pensou, que saem ao largo, ao encontro deles". Mas nada disto disse ao pássaro, que de resto não sabia entendê-lo e não tardaria a aprender quem os falcões eram.
- Repousa à vontade, passarito. E, depois, vai, e vive a tua vida, como os homens, os pássaros e os peixes.
Deu-lhe coragem a conversa, porque as costas haviam ficado dormentes de noite e lhe doíam, agora, de verdade.
- Fica em minha casa, se preferes, ó pássaro. Tenho pena de não poder içar a vela e levar-te com a aragem que se está levantando. Mas estou com um amigo.

Ernest Hemingway, in "O Velho e o Mar"

segunda-feira, 19 de julho de 2010

Partir

Porto, 2010 © Adelina Silva

Ainda que atravesses a vastidão do mar, ainda que, como diz o nosso Vergílio, as costas, as cidades desapareçam no horizonte, os teus vícios seguir-te-ão onde quer que tu vás. Do mesmo se queixou um dia alguém a Sócrates: «Porquê admirar-te da inutilidade das tuas viagens,» - foi a resposta, - «se para todo o lado levas a mesma disposição? A causa que te aflige é exactamente a mesma que te leva a partir!» De facto, em que pode ajudar a mudança de local, ou o conhecimento de novas paisagens e cidades? Toda essa agitação carece de sentido. Andares de um lado para o outro não te ajuda em nada, porque andas sempre na tua própria companhia. (…) O que tu fazes agora não é viajar, mas sim andar à deriva, a saltar de um lado para o outro, quando na realidade o que tu pretendes - viver segundo a virtude - podes consegui-lo em qualquer sítio.

Séneca, in “Cartas a Lucílio”

domingo, 11 de julho de 2010

quarta-feira, 7 de julho de 2010

Contemplação

Póvoa de Varzim, 2010 © Adelina Silva

Quem descuida a vida, embevecido numa ingénua contemplação (e todas as contemplações são ingénuas), não vê as coisas com desprendimento, dotadas de livre, complexo e contrastante movimento, que forma a essência da sua comicidade. O típico da contemplação é, pelo contrário, determo-nos no sentimento difuso e vivaz que surge em nós ao contacto com as coisas. É aqui que reside a desculpa dos contemplativos: vivem em contacto com as coisas e, necessariamente, não lhes sentem as singularidades e características; sentem-nas, pura e simplesmente.
Os práticos - paradoxo - vivem distantes das coisas, não as sentem, mas compreendem o mecanismo que as faz funcionar. E só ri de uma coisa quem está distante dela. Aqui está, implícita, uma tragédia: habituamo-nos a uma coisa afastando-nos dela, quer dizer, perdendo o interesse.

Cesare Pavese, in "O Ofício de Viver"

Sugestão Musical
Bliss - Remember my name

sexta-feira, 2 de julho de 2010

Sentidos


Póvoa de Varzim, 2010 © Adelina Silva

De todos os sentidos, a vista é o mais superficial, o ouvido o mais orgulhoso, o olfacto o mais voluptuoso, o gosto o mais supersticioso e inconstante, o tacto o mais profundo.
Denis Diderot

Sugestão Musical

Ludovico Einaudi - Nuvole Bianche

domingo, 27 de junho de 2010

Cidade de Quimeras

Sevilha, 2009 © Adelina Silva

A verdade acerca do mundo, disse ele, é que tudo é possível. Não fosse o caso de vocês se terem habituado desde a nascença a ver tudo aquilo que vos rodeia, esvaziando assim as coisas da sua estranheza, e a realidade surgiria aos vossos olhos tal como é, um truque de magia num número de ilusionismo, um sonho febril, um transe povoado de quimeras sem analogia nem precedente imaginável, um carnaval itinerante, um espectáculo de feira migratório cujo derradeiro destino, depois de montar a tenda tantas e tantas vezes em tantos baldios enlameados, é tão indescritível e calamitoso que o espírito humano não consegue sequer concebê-lo.

Cormac McCarthy, in “Meridiano de Sangue”

Sugestão Musical
VAST - One More Day

quinta-feira, 24 de junho de 2010

O Sonho

Póvoa de Varzim, 2010 © Adelina Silva

Tenho mais pena dos que sonham o provável, o legítimo e o próximo, do que dos que devaneiam sobre o longínquo e o estranho. Os que sonham grandemente, ou são doidos e acreditam no que sonham e são felizes, ou são devaneadores simples, para quem o devaneio é uma música da alma, que os embala sem lhes dizer nada. Mas o que sonha o possível tem a possibilidade real da verdadeira desilusão. Não me pode pesar muito o ter deixado de ser imperador romano, mas pode doer-me o nunca ter sequer falado à costureira que, cerca das nove horas, volta sempre a esquina da direita. O sonho que nos promete o impossível já nisso nos priva dele, mas o sonho que nos promete o possível intromete-se com a própria vida e delega nela a sua solução. Um vive exclusivo e independente; o outro submisso das contingências do que acontece.

Fernando Pessoa, in “O Livro do Desassossego”
Sugestão Musical
Midlake - Acts of Man