terça-feira, 31 de março de 2009

Janela Indiscreta

Sevilla, 2009 © Adelina Silva

Chega ao fim do dia
a hora mais lenta, quando o céu
é vago e as luzes se acendem
no prédio da frente.

Vemo-los por vezes
dentro das janelas, vultos
delicados como miniaturas
ou meros reflexos que passam
nos vidros.

Alguns prosseguem encargos
de sombra, outros detêm-se
a olhar a rua, no gesto
a expressão do seu puro
enigma.

Rui Pires Cabral

segunda-feira, 30 de março de 2009

Faça-se Luz

Sevilla, 2009 © Adelina Silva

Faz-se luz pelo processo
de eliminação de sombras
Ora as sombras existem
as sombras têm exaustiva vida própria
não dum e doutro lado da luz mas no próprio seio dela
intensamente amantes loucamente amadas
e espalham pelo chão braços de luz cinzenta
que se introduzem pelo bico nos olhos do homem

Por outro lado a sombra dita a luz
não ilumina realmente os objectos
os objectos vivem às escuras
numa perpétua aurora surrealista
com a qual não podemos contactar
senão como os amantes
de olhos fechados
e lâmpadas nos dedos e na boca
Mário Cesariny

domingo, 29 de março de 2009

Destino

Sevilla, 2009 © Adelina Silva

Tudo é capricho ao seu redor, em sombras fátuas…
O aroma endoideceu, upou-se em cor, quebrou…
Tenho frio… Alabastro! A minha´alma parou…
E o seu corpo resvala a projectar estátuas…

Ela chama-me em Íris. Nimba-se a perder-me,
Golfa-me os seios nus, ecoa-me em quebranto…
Timbres, elmos, punhais… A doida quer morrer-me
Mário de Sá-Carneiro

sexta-feira, 27 de março de 2009

Fim

Sevilla, 2009 © Adelina Silva


Se desmorono ou se edifico,
se permaneço ou me desfaço,
— não sei, não sei. Não sei se fico
ou passo.

Cecilia Meireles

quinta-feira, 26 de março de 2009

É assim...

Sevilla, 2009 © Adelina Silva

era assim:

queres?
queres algo?
queres desejar?
desejas querer?
desejas-me?
desejas querer-me?
queres desejar-me?
queres querer-me?
queres que te deseje?
desejas que te queira?
queres que te queira?

quanto me
queres?
quanto me
desejas?
ah quanto te quero
quando te quero
quando me queres...
Ana Hatherly

quarta-feira, 25 de março de 2009

Um dia...

Póvoa de Varzim, 2009 © Adelina Silva

Sempre pensei que as amizades continuassem para sempre.
Hoje não tenho mais tanta certeza disso.
Em breve cada um vai para seu lado, seja
pelo destino ou por algum
desentendimento, segue a sua vida.

Talvez continuemos a nos encontrar, quem sabe... nas cartas
que trocaremos.
Podemos falar ao telefone e dizer algumas tolices...
Aí, os dias vão passar, meses... anos... até este contacto
se tornar cada vez mais raro.

Vamo-nos perder no tempo...

Fernando Pessoa

terça-feira, 24 de março de 2009

Partida

Póvoa de Varzim, 2009 © Adelina Silva
(...)
Um dia partirei, muito diferente.
Enfim, aquela que jamais eu fora!
E os de Cá hão-de achar que vou contente.

Natércia Freire

domingo, 22 de março de 2009

Não há acasos

Póvoa de Varzim, 2009 © Adelina Silva

Cada um que passa em nossa vida,
passa sozinho, pois cada pessoa é única
e nenhuma substitui outra.
Cada um que passa em nossa vida,
passa sozinho, mas não vai só
nem nos deixa sós.
Leva um pouco de nós mesmos,
deixa um pouco de si mesmo.
Há os que levam muito,
mas há os que não levam nada.
Essa é a maior responsabilidade de nossa vida,
e a prova de que duas almas
não se encontram ao acaso.

Antoine de Saint-Exupéry

sábado, 21 de março de 2009

Ausência

Póvoa de Varzim, 2009 © Adelina Silva
Quis dar em versos
a dor da tua ausência;
mas depois vi que vivias dentro de mim
eu é que tinha partido.

Isabel Meyrelles

sexta-feira, 20 de março de 2009

Auto-Retrato



Espáduas brancas palpitantes:
asas no exílio dum corpo.
Os braços calhas cintilantes
para o comboio da alma.
E os olhos emigrantes
no navio da pálpebra
encalhado em renúncia ou cobardia.
Por vezes fêmea. Por vezes monja.
Conforme a noite. Conforme o dia.
Molusco. Esponja
embebida num filtro de magia.
Aranha de ouro
presa na teia dos seus ardis.
E aos pés um coração de louça
quebrado em jogos infantis.


Natália Correia, in "Livro dos Amantes II"

quinta-feira, 19 de março de 2009

Ch[G]ato

Lisboa, 2009 © Adelina Silva
Uma pedra na cabeça da mulher; e na cabeça
da casa, uma luz violenta.
Anda um peixe comprido pela cabeça do gato.
A mulher senta-se no tempo e a minha melancolia
pensa-a, enquanto
o gato imagina a elevada casa.
Eternamente a mulher da mão passa a mão
pelo gato abstracto,
e a casa e o homem que eu vou ser
são minuto a minuto mais concretos.
(...)

Herberto Hélder

quarta-feira, 18 de março de 2009

Fuga de mim

Póvoa de Varzim, 2009 © Adelina Silva

(...)
E roda a melancolia
seu interminável fuso!
Não me encontro com ninguém
(tenho fases como a lua...)

No dia de alguém ser meu
não é dia de eu ser sua...
E, quando chega esse dia,
o outro desapareceu...


Cecília Meireles

terça-feira, 17 de março de 2009

Luz

Póvoa de Varzim, 2009 © Adelina Silva

Um espelho em frente de um espelho: imagem
que arranca da imagem, oh
maravilha do profundo de si, fonte fechada
na sua obra, luz que se faz
para se ver a luz.

Herberto Hélder

segunda-feira, 16 de março de 2009

Eu

Póvoa de Varzim, 2009 © Adelina Silva

(...)
Sou aquela que passa e ninguém vê ...
Sou a que chamam triste sem o ser ...
Sou a que chora sem saber porquê ...
(...)

Florbela Espanca

domingo, 15 de março de 2009

O Beijo

Póvoa de Varzim, 2009 © Adelina Silva
Congresso de gaivotas neste céu
Como uma tampa azul cobrindo o Tejo.
Querela de aves, pios, escarcéu.
Ainda palpitante voa um beijo.

Donde teria vindo! (Não é meu...)
De algum quarto perdido no desejo?
De algum jovem amor que recebeu
Mandado de captura ou de despejo

É uma ave estranha: colorida,
Vai batendo como a própria vida,
Um coração vermelho pelo ar.

E é a força sem fim de duas bocas,
De duas bocas que se juntam, loucas!
De inveja as gaivotas a gritar...

Alexandre O'Neill

sábado, 14 de março de 2009

Coisa: AMAR

Póvoa de Varzim, 2009 © Adelina Silva


Contar-te longamente as perigosas
coisas do mar. Contar-te o amor ardente
e as ilhas que só há no verbo amar.
Contar-te longamente longamente.

Amor ardente. Amor ardente. E mar.
Contar-te longamente as misteriosas
maravilhas do verbo navegar.
E mar. Amar: as coisas perigosas.

Contar-te longamente que já foi
num tempo doce coisa amar. E mar.
Contar-te longamente como doi

desembarcar nas ilhas misteriosas.
Contar-te o mar ardente e o verbo amar.
E longamente as coisas perigosas.
Manuel Alegre

quarta-feira, 11 de março de 2009

Os Silêncios

Póvoa de Varzim, 2009 © Adelina Silva
Não entendo os silêncios
que tu fazes
nem aquilo que espreitas
só comigo
Se escondes a imagem
e a palavra
e adivinhas aquilo
que não digo
Se te calas
eu oiço e eu invento
Se tu foges
eu sei não te persigo
Estendo-te as mãos
dou-te a minha alma
e continuo a querer
ficar contigo.
Maria Teresa Horta

segunda-feira, 9 de março de 2009

Noutros Lugares

Viana do Castelo © Adelina Silva

(...)
É que os lugares acabam. Ou ainda antes
de serem destruídos, as pessoas somem,
e não mais voltam onde parecia
que elas ou outras voltariam sempre
por toda a eternidade. Mas não voltam,
desviadas por razões ou por razão nenhuma.
É que as maneiras, modos, circunstâncias
mudam. Desertas ficam praias que brilhavam
não de água ou sol mas solta juventude.
(...)
Jorge de Sena

domingo, 8 de março de 2009

Com as Gaivotas

Póvoa de Varzim, 2009 © Adelina Silva
Contente de me dar como as gaivotas
bebo o Outono e a tarde arrefecida.
Perfeito o céu, perfeito o mar, e este amor
por mais que digam é perfeito como a vida.

Tenho tristezas como toda a gente.
E como toda a gente quero alegria.
Mas hoje sou dum céu que tem gaivotas,
leve o diabo essa morte dia a dia.

Eugénio de Andrade, in “Os amantes sem dinheiro”


sexta-feira, 6 de março de 2009

A ponte

Porto, 2009 © Adelina Silva

Entre instante e instante
entre eu sou e tu és,
a palavra ponte.

Entras em ti mesma
ao entrar nela:
como um anel
o mundo fecha-se.

De uma margem à outra
há sempre um corpo que se estende,
um arco-íris.

Eu dormirei sob os seus arcos.
Octavio Paz, in "Antologia Poética"

quinta-feira, 5 de março de 2009

Gaivota

Porto, 2009 © Adelina Silva

Se uma gaivota viesse
Trazer-me o céu de Lisboa
No desenho que fizesse
Nesse céu onde o olhar
É uma asa que não voa
Esmorece e cai no mar

Que perfeito coração
No meu peito bateria
Meu amor na tua mão
Nessa mão onde cabia
Perfeito o meu coração

Se um português marinheiro
Dos sete mares andarilho
Fosse quem sabe o primeiro
A contar-me o que inventasse
Se esse olhar de novo brilho
Ao meu olhar se enlaçasse

(…)

Se ao dizer adeus à vida
As aves todas do céu
Me dessem na despedida
O teu olhar derradeiro
Esse olhar que era só teu
Amor que foste o primeiro

Que perfeito coração
No meu peito morreria
Meu amor na tua mão
Nessa mão onde perfeito
Bateu o meu coração
Alexandre O'Neill

segunda-feira, 2 de março de 2009

Inscrição sobre as ondas

Póvoa de Varzim, 2009 © Adelina Silva

Mal fora iniciada a secreta viagem
um deus me segredou que eu não iria só.
Por isso a cada vulto os sentidos reagem,
supondo ser a luz que deus me segredou.

David Mourão-Ferreira, in "A Secreta Viagem"

domingo, 1 de março de 2009

Quero também...

Póvoa de Varzim, 2009 © Adelina Silva
(...)
Levo-te a jantar num restaurante à média luz
Queres beber alguma coisa para quebrar os teus tabus?
Para mim não obrigado os meus já os quebrei
Abres-me o apetite nem parece que já jantei
Quase que aposto que temos o mesmo plano
Hoje vai ser a noite mais quente do ano
Tu és a causa desta minha doença rara
Não consigo tirar o sorriso parvo da cara
(...)
Letra: AC Firmino
Música: AC Firmino
Álbum: Preto no Branco - Boss AC