sexta-feira, 29 de maio de 2009

O meu interior

Sevilha, 2009 © Adelina Silva
o olhar é um pensamento.
Tudo assalta tudo, e eu sou a imagem de tudo.
O dia roda o dorso e mostra as queimaduras,
a luz cambaleia,
a beleza é ameaçadora.
-Não posso escrever mais alto.
Transmitem-se, interiores, as formas.
Herberto Hélder

terça-feira, 26 de maio de 2009

Sabem quem eu sou?

Braga, 2009 © Adelina Silva
À minha frente, um grupo de mulheres de faces, testa e nariz besuntados com uma pasta amarela faziam-me lembrar índias em pé de guerra. Lançavam longas baforadas daquelas piriscas verdes fedorentas.
Eu era, no mínimo, um bom palmo mais alta do que elas, o que também acontecia em relação aos homens. Magros sem serem escanzelados, possuíam a mesma elegância e leveza de movimentos que eu sempre admirara no meu pai. Os meus sessenta quilos de peso e um metro e setenta e seis de altura faziam-me sentir gorda e pesada.
O modo como me olhavam, fixando-me o rosto e os olhos, sem me evitar, e sorrindo, era o pior de tudo. Um sorriso que eu não conseguia definir. Como um sorriso pode ser ameaçador!
Outros cumprimentavam-me com um aceno de cabeça. Saberiam quem eu era? Estariam todos à minha espera, como U Ba? Decidi fazer de conta que os não via. Não sabia como corresponder ao seu cumprimento e, de olhos postos numa longínqua meta imaginária, desci a rua principal o mais depressa que pude.

Jan-Philipp Sendker, in “Na Birmânia deixei o meu coração”

sábado, 23 de maio de 2009

Mágoa sem praia

Póvoa de Varzim, 2009 © Adelina Silva

A tristeza matou os peixes
que nadavam nos teus olhos
envenenou-os de um fel sem nome
numa mágoa sem praia ou areia
onde estender o teu sorriso antigo
agora branco de uma cal egípcia
que te pinta o rosto
e te seca os veios.
José Torres

quinta-feira, 21 de maio de 2009

O Modelo dos Modelos

Póvoa de Varzim, 2009 © Adelina Silva
"A construção de um modelo era portanto para ele um milagre de equilíbrio entre os princípios (deixados na sombra) e a experiência (imperceptível), mas o resultado tinha de ter uma consistência muito mais sólida do que aqueles e do que esta. Num modelo bem construído, de facto, cada detalhe deve ser condicionado pelos outros, pelo que tudo se mantém com absoluta coerência, tal como num mecanismo onde, se uma das engrenagens pára, todo o conjunto pára. O modelo é por definição aquilo em que não há nada a mudar, aquilo que funciona na perfeição; ao passo que, em relação à realidade, podemos facilmente verificar que ela não funciona, que se espapaça por todos os lados; portanto, nada mais resta do que obrigá-la a tomar a forma do modelo, a bem ou a mal."

Italo Calvino, in “Palomar”

terça-feira, 19 de maio de 2009

Solidão

Póvoa de Varzim, 2009 © Adelina Silva

A solidão é sempre fundamento
da liberdade. Mas também do espaço
por onde se desenvolve o alargar do tempo
à volta da atenção estrita do acto.
Húmus, e alma, é a solidão. E vento,
quando da imóvel solenidade clama
o mudo susto do grito, ainda suspenso
do nome que vai ser sua prisão pensada.
A menos que esse nome seja estremecimento
— fruto de solidão compenetrada
que, por dentro da sombra, nomeia o movimento
de cada corpo entrando por sua luz sagrada.


Fernando Echevarría, in "Sobre os Mortos"

domingo, 17 de maio de 2009

Leitura de uma Onda

Póvoa de Varzim, 2009 © Adelina Silva

"Em resumo, não se pode observar uma onda sem ter em conta os aspectos complexos que concorrem para a sua formação e aqueles outros, igualmente complexos, a que essa mesma onda dá lugar. Estes aspectos variam continuamente, pelo que uma onda é sempre diferente de uma outra onda; mas também é verdade que cada onda é igual a uma outra onda, mesmo que não seja aquela que lhe é imediatamente contígua ou sucessiva; em resumo, existem formas e sequências que se repetem, ainda que irregularmente distribuídas no espaço e no tempo.(…)
A crista da onda que avança levanta-se num ponto determinado, mais do que nos outros, e é ali que começa a franjar-se de branco. Se isso acontece a uma certa distância da costa, a espuma tem tempo de se enrolar sobre si própria e de desaparecer de novo, como que engolida, para no mesmo momento tornar a envolver tudo, mas desta vez despontando de baixo, como um tapete branco que trepa pela praia acima para acolher a onda que está a chegar."

Italo Calvino, in “Palomar”

sexta-feira, 15 de maio de 2009

Regresso ao cais

Póvoa de Varzim, 2009 © Adelina Silva
no marítimo lodo da fala fazem ninho
pássaros de sal com suas asas afiadas
sulcam
o susto de ficar sozinho
e a cabeça sibilante duma libélula esvoaça
na visão dourada do sonho o tempo circular dos dedos
no copo as mãos em movimento de esquecidos barcos
sobre vagas de poalha estelar onde naufragam
as palavras sem nexo e repetidos gestos

Al Berto

quinta-feira, 14 de maio de 2009

É assim porque é assim

Póvoa de Varzim, 2009 © Adelina Silva

Viu ainda dois olhos enormes, redondos, saltados e interrogativos – tinha olhar de quem tem uma asa ferida – distúrbio talvez da tiróide, olhos que perguntavam. A quem interrogava ela? a Deus? Ela não pensava em Deus, Deus não pensava nela. Deus é de quem conseguir pegá-lo. Na distracção aparece Deus. Não fazia perguntas. Adivinhava que não há respostas. Era lá tola de perguntar? E de receber um “não” na cara? Talvez a pergunta vazia fosse apenas para que um dia alguém não viesse a dizer que ela nem ao menos havia perguntado. Por falta de quem lhe respondesse ela mesma parecia se ter respondido: é assim porque é assim. Existe no mundo outra resposta? Se alguém sabe de uma melhor que se apresente e a diga, estou há anos esperando.
Enquanto isso as nuvens são brancas e o céu é todo azul. Para que tanto Deus. Por que não um pouco para os homens?
Clarice Lispector, in “A Hora da Estrela”


quarta-feira, 13 de maio de 2009

Pal(o)Mar

Póvoa de Varzim, 2009 © Adelina Silva


"O senhor Palomar procura agora limitar o seu campo de observação; se ele considerar um quadrado, digamos, de dez metros de mar, pode fazer um inventário completo de todos os movimentos de ondas que ali se repitam com variadas frequências, num dado intervalo de tempo. A dificuldade consiste em fixar os limites desse quadrado, porque se ele considerar, por exemplo, como o lado mais distante de si a linha mais proeminente de uma onda que avança, esta linha, ao aproximar-se dele e ao elevar-se, esconde aos seus olhos tudo aquilo que está por detrás dela; e eis que o espaço tomado em consideração se inverte e se reduz ao mesmo tempo."
Italo Calvino, in “Palomar”

segunda-feira, 11 de maio de 2009

Olhares




Póvoa de Varzim, 2009 © Adelina Silva

(...) "Reencontramo-nos a cada frase com todos os grandes temas mas enganamo-nos se os tentarmos organizar: coisas como o sentido da vida, a busca de uma transcendência, a morte e a passagem do tempo, o conflito das gerações e por aí fora, não têm mais importância do que pôr e tirar o chapéu, beber um copo de água, fumar um cigarro, dar uma gorjeta, colher uma flor ou coçar o nariz. A vida passa-se a todos os níveis e porventura mais nos que não conseguimos nomear. Ninguém vale mais que o outro, tudo conta e de tudo depende cada destino. Cada silêncio tanto como o que se diz. O infinitamente grande só se vê com um microscópio. Porque a vida é assim. Mas como se representa isto? Se a vida mesmo não é a ficção que no palco tentamos reconstruir com uma imagem? (...)"

sábado, 9 de maio de 2009

Eterna agonia

Póvoa de Varzim, 2009 © Adelina Silva

As lágrimas que não chorei
arrependidas
fazem transbordar a eterna agonia do mar
como um lençol fúnebre
com que tivesse alguém coberto o rosto metafórico
dos cinco continentes que em nós existem

Cruzeiro Seixas

quinta-feira, 7 de maio de 2009

Ao sol

Póvoa de Varzim, 2009 © Adelina Silva

Um pouco mais a Sul
há ventos de areia
cercando a cidade de cabeleiras protectoras,
por todo o lado corre um cheiro intenso a peixe.
Esta é a terra dos cabeças-de-pungo!
Entre cacimbo que passa e vento que sopra
o tempo espreguiça-se sobre dunas.
Há peixe seco e cheiro intenso de peixe
secando escalado ao sol e ao sal do deserto.

terça-feira, 5 de maio de 2009

Onde estás?

Póvoa de Varzim, 2009 © Adelina Silva


atento o olhar
a este quase silêncio
de peculiar ausência

João-Maria Nabais

domingo, 3 de maio de 2009

O mar à janela

Póvoa de Varzim, 2009 © Adelina Silva

14 de janeiro
todo o santo dia bateram à porta. não abri, não me apetece ver pessoas, ninguém.
escrevi muito, de tarde e pela noite dentro.
curiosamente, hoje, ouve-se o mar como se estivesse dentro de casa. o vento deve estar de feição. a ressonância das vagas contra os rochedos sobressalta-me. desconfio que se disser mar em voz alta, o mar entra pela janela.
sou um homem privilegiado, ouço o mar ao entardecer. que mais posso desejar? e no entanto, não estou alegre nem apaixonado. nem me parece que esteja feliz. escrevo com um único fim: salvar o dia.

Al Berto