sábado, 28 de janeiro de 2012

Não quero ir por aí!!!


Figueira da Foz, 2007 © Adelina Silva

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
- Sei que não vou por aí!


José Régio, in "Poemas de Deus e do Diabo"

terça-feira, 24 de janeiro de 2012

Espaço Interior


Londres, 2011 © Adelina Silva

quando o poema
são restos do naufrágio
do espaço interior
numa furtiva luz
desesperada,

resvalando até
à superfície,
lisa, firme, compacta,
das coisas que todos
os dias agarramos,

quando
o poema as envolve
numa aura verbal
e se incorpora nelas,
ou são elas a impor-lhe

a sua metafísica
e o espaço exterior
que povoam de
temporalidades eriçadas,
luzes cruas, sons ínfimos, poeiras.


Vasco Graça Moura, in "Antologia dos Sessenta Anos"

domingo, 22 de janeiro de 2012

Fragmentos


2009 © Adelina Silva

Primeiro entretiveram-me as especulações metafísicas, as ideias científicas depois. Atraíram-me finalmente as sociológicas. Mas em nenhum destes estádios da minha busca da verdade encontrei segurança e alívio. (...)
Se erguia dos livros os meus olhos cansados, ou se dos meus pensamentos desviava para o mundo exterior a minha perturbada atenção, só uma coisa eu via, desmentindo-me toda a utilidade de ler e pensar, arrancando-me uma a uma todas as pétalas da ideia do esforço: a infinita complexidade das coisas, a imensa soma, a prolixa inatingibilidade dos próprios poucos factos que se poderiam conceber precisos para o levantamento de uma ciência.

Fernando Pessoa, in "Livro do Desassossego"

quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

O Sorriso


Sevilha, 2009 © Adelina Silva

Creio que foi o sorriso,
o sorriso foi quem abriu a porta.
Era um sorriso com muita luz
lá dentro, apetecia
entrar nele, tirar a roupa, ficar
nu dentro daquele sorriso.
Correr, navegar, morrer naquele sorriso.

Eugénio de Andrade

sábado, 14 de janeiro de 2012

Sonho... sem ter de quê



Póvoa de Varzim, 2009 © Adelina Silva

Olhando o mar, sonho sem ter de quê.
Nada no mar, salvo o ser mar, se vê.
Mas de se nada ver quanto a alma sonha!
De que me servem a verdade e a fé?

Fernando Pessoa

terça-feira, 10 de janeiro de 2012

Travessia


Porto, 2011© Adelina Silva

Duas velhas bacias sobrepondo
suas bordas de mármore redondo.
Do alto a água fluindo, devagar,
sobre a água, mais em baixo, a esperar,

muda, ao murmúrio, em diálogo secreto,
como que só no côncavo da mão,
entremostrando um singular objeto:
o céu, atrás da verde escuridão;

ela mesma a escorrer na bela pia,
em círculos e círculos, constante-
mente, impassível e sem nostalgia,

descendo pelo musgo circundante
ao espelho da última bacia
que faz sorrir, fechando a travessia.

Rainer Maria Rilke

domingo, 8 de janeiro de 2012

TU fazes parte!


Guimarães, 2011© Adelina Silva

Soltas a sigla, o pássaro e o losango,
Também sabes deixar em liberdade
O roxo, qualquer azul e o vermelho.
Todas as cores podem aproximar-se
Quando um menino as conduz no sol
E cria a fosforescência:
A ordem que se desintegra
Forma outra ordem ajuntada
Ao real _ este obscuro mito.

Murilo Mendes, in "Tempo Espanhol"

quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

Imaginação


Algures no interior de Espanha, 2011© Adelina Silva

no doloroso advento. da incerteza. "é a prosa da vida que faz falta a muita gente". sentença de escritor. roubam-te a esperança. o fundo olhar da paixão. chegam-se a ti com um fósforo. e querem levar tudo. a troco de um esgar. cotado em bolsa. querem vampirizar o ar que respiras. cuida. meu amor. cuida da prosa. do vagaroso espreguiçar da palavra. leva-a. no cesto da fruta. antes que apodreça na casca endividada. querem que os teus olhos. calem. as fogueiras. a alegria. o sol. que te venderam. como só teu. e agora. cobram juros. porque existe. porque sim. é preciso cortar em tudo. dizem. porque o sol também é um assalariado. e a luz que lhe assiste. (à excepção dos senhores que lhe sugaram a energia. toda. renovável). tem custos. umas manhâs às escuras. ou. uns poentes apagados. consolidam as finanças. sabes amor. estamos na boca da turbina. de assépticos. predadores. cuida amor. guarda a palavra. semeia-a no ventre. inventa-a. na dança silenciosa dos teus lábios. a palavra. em prosa serena. que ainda. não paga IVA. se já te arrancaram o fôlego. para pagar os juros da divída. salva. a imaginação. que (ainda) não é tributada.

Alberto Serra, in http://noites-de-lua-branca.blogspot.com/
(post de 23/12/11)


segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

Vertigem


Póvoa de Varzim, 2011© Adelina Silva

O que é vertigem? Medo de cair? Mas porque temos vertigem num mirante cercado por um balaustre sólido? Vertigem não é o medo de cair, é outra coisa. É a voz do vazio debaixo de nós, que nos atrai e nos envolve, é o desejo da queda da qual nos defendemos aterrorizados.

Milan Kundera, in "A Insustentável Leveza do Ser"