domingo, 30 de outubro de 2011

Procuro-te onde não estás


Póvoa de Varzim, 2009 © Adelina Silva

(...)
Foste embora? Procuraste
O amor de algum outro passo
Que em vez de seguir-te sempre
Andasse sempre ao teu lado?

Eu ando agora sozinho
Na praia longa e deserta
Eu ando agora sozinho
Por que fugiste? Por quê?
Ao meu passo solitário
Triste e incerto como nunca
Só responde a voz das ondas
Que se esfacelam na areia.

Vinicius de Moraes, in "Poesia Completa e Prosa"


sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Rêve Oublié


Póvoa de Varzim, 2010 © Adelina Silva

Neste meu hábito surpreendente de te trazer de costas
neste meu desejo irrefletido de te possuir num trampolim
nesta minha mania de te dar o que tu gostas
e depois esquecer-me irremediavelmente de ti
(...)
Contar a vida pelos dedos e perdê-los
contar um a um os teus cabelos e seguir a estrada
contar as ondas do mar e descobrir-lhes o brilho
e depois contar um a um os teus dedos de fada

Abrir-se a janela para entrarem estrelas
abrir-se a luz para entrarem olhos
abrir-se o tecto para cair um garfo no centro da sala
e depois ruidosa uma dentadura velha
E no CIMO disto tudo uma montanha de ouro

E no FIM disto tudo um Azul-de-Prata.

António Maria Lisboa


segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Paisagem


Vale de Pisão, 2011 © Adelina Silva

Subi a alta colina
Para encontrar a tarde
Entre os rios cativos

A sombra sepultava o silêncio.



Assim entrei no pensamento

Da morte minha amiga

Ao pé da grande montanha

Do outro lado do poente.



Como tudo nesse momento

Me pareceu plácido e sem memória

Foi quando de repente uma menina

De vermelho surgiu no vale correndo, correndo…


Vinicius de Moraes, in "Antologia Poética e Prosa"


sexta-feira, 21 de outubro de 2011

Mulheres à Beira-Mar


Póvoa de Varzim, 2011 © Adelina Silva

Confundido os seus cabelos com os cabelos
do vento, têm o corpo feliz de ser tão seu e
tão denso em plena liberdade.

Lançam os braços pela praia fora e a brancura
dos seus pulsos penetra nas espumas.

Passam aves de asas agudas e a curva dos seus
olhos prolonga o interminável rastro no céu
branco.

Com a boca colada ao horizonte aspiram longa-
mente a virgindade de um mundo que nasceu.

O extremo dos seus dedos toca o cimo de
delícia e vertigem onde o ar acaba e começa.

E aos seus ombros cola-se uma alga, feliz de
ser tão verde.

Sophia de Mello Breyner Andresen


sábado, 15 de outubro de 2011

O Novo Homem


Burgos, 2010 © Adelina Silva

(...)
Perdão: acabou-se
a época dos pais.
Quem comia doce
já não come mais.
Não chame de filho
este ser diverso
que pisa o ladrilho
de outro universo.
Sua independência
é total: sem marca
de família, vence
a lei do patriarca.
Liberto da herança
de sangue ou de afeto,
desconhece a aliança
de avô com seu neto.
Pai: macromolécula;
mãe: tubo de ensaio,
e, per omnia secula,
livre, papagaio, sem memória e sexo,
feliz, por que não?
pois rompeu o nexo
da velha Criação,
eis que o homem feito
em laboratório
sem qualquer defeito
como no antigório,
acabou com o Homem.
Bem feito.

Carlos Drummond de Andrade, excerto do poema "O Novo Homem"


quarta-feira, 12 de outubro de 2011

Rosa dos Mares


Lisboa, 2011 © Adelina Silva

Tinha o tamanho da praia
o corpo era de areia.
Ele próprio era o início
do mar que o continuava.
Destino de água salgada
principiado na veia.

E quando as mãos se estenderam
a todo o seu comprimento
e quando os olhos desceram
a toda a sua fundura
teve o sinal que anuncia
o sonho da criatura.

Largou o sonho nos barcos
que dos seus dedos partiam
que dos seus dedos paisagens
países antecediam.

E quando o seu corpo se ergueu
Voltado para o desengano
só ficou tranquilidade
na linha daquele além.
Guardada na claridade
do olhar que a retém..


Natália Correia


domingo, 9 de outubro de 2011

Versos de Orgulho


Porto, 2011 © Adelina Silva

(...)
O mundo! O que é o mundo, ó meu amor?!
O jardim dos meus versos todo em flor,
A seara dos teus beijos, pão bendito,

Meus êxtases, meus sonhos, meus cansaços...
São os teus braços dentro dos meus braços:
Via Láctea fechando o Infinito!...


Florbela Espanca, in "Charneca em Flor"


quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Fifth Avenue


Londres, 2011 © Adelina Silva

Isto de um homem se sentir só, à saída
do trabalho, do cinema, ao ir pra casa...

Saber que ninguém espera que cheguemos,
para alegrar-se ao ver-nos, ou rechaçar-nos,
torna inimiga, deserta
e inóspita a mais povoada rua.

Os amigos... Contam-me problemas
e com a pressa desandam. E uma pessoa fica
de novo e outra vez sozinha, constrangida
a enroscar-se no seu ego e no seu tédio.

Com que vazio deparamos em nós próprios
quando buscamos o nosso eu interno.
Que ser desagradável se contempla
examinando o nosso próprio ser.

E aqui, entre tanta gente, na cidade,
sentimos que nada interessamos a ninguém.

J. M. Fonollosa, in "New York - Cidade do Homem"


domingo, 2 de outubro de 2011

Escuto sem te ouvir


Magaluf, 2007 © Adelina Silva

Falas de civilização, e de não dever ser,
Ou de não dever ser assim.
Dizes que todos sofrem, ou a maioria de todos,
Com as cousas humanas postas desta maneira.
Dizes que se fossem diferentes, sofreriam menos.
Dizes que se fossem como tu queres, seria melhor.
Escuto sem te ouvir.
Para que te quereria eu ouvir?
Ouvindo-te nada ficaria sabendo.
Se as cousas fossem diferentes, seriam diferentes: eis tudo.
Se as cousas fossem como tu queres, seriam só como tu queres.
Ai de ti e de todos que levam a vida
A querer inventar a máquina de fazer felicidade!

Alberto Caeiro, in "Poemas Inconjuntos"