quarta-feira, 30 de setembro de 2009

Sofrer para quê?

Porto, 2009 © Adelina Silva

Esquecemos, repudiamos uma pessoa triste ou doente, em virtude da sua inutilidade psíquica ou física.
Ninguém se abandonará a ti, se não vir nisso algum proveito.
E tu? Creio ter-me abandonado uma vez, desinteressadamente. Não devo, portanto, chorar por ter perdido o objecto daquele abandono. Já não seria desinteressado, nesse caso. No entanto, vendo quanto se sofre, o sacrifício é antinatural. Ou superior às minhas forças. E chorar é ceder ao mundo, é reconhecer que se procurava algum proveito. Há alguém que renuncie, podendo ter? A caridade não é outra coisa que o ideal da impotência.
(…)
Mas a grande, a tremenda verdade é esta: sofrer, para nada serve
.

Cesare Pavese, in "O Ofício de Viver"

domingo, 27 de setembro de 2009

Possuo para sempre tudo o que perdi

Porto, 2009 © Adelina Silva


Possuo para sempre tudo o que perdi. (…) Bebo, fumo, mantenho-me atento, absorto – aqui sentado, junto à janela fechada. Ouço-te ciciar amo-te pela primeira vez, e na ténue luminosidade que se recolhe ao horizonte acaba o corpo. Recolho o mel, guardo a alegria, e digo-te baixinho: Apaga as estrelas, vem dormir comigo no esplendor da noite do mundo que nos foge.


Al Berto, in “O último coração do sonho”

terça-feira, 22 de setembro de 2009

Braga, 2009 © Adelina Silva


Ninguém avança pela vida em linha recta. Muitas vezes, não paramos nas estações indicadas no horário. Por vezes, saímos dos trilhos. Por vezes, perdemo-nos, ou levantamos voo e desaparecemos como pó. As viagens mais incríveis fazem-se às vezes sem se sair do mesmo lugar. No espaço de alguns minutos, certos indivíduos vivem aquilo que um mortal comum levaria toda a sua vida a viver. Alguns gastam um sem número de vidas no decurso da sua estadia cá em baixo. Alguns crescem como cogumelos, enquanto outros ficam inelutávelmente para trás, atolados no caminho. Aquilo que, momento a momento, se passa na vida de um homem é para sempre insondável. É absolutamente impossível que alguém conte a história toda, por muito limitado que seja o fragmento da nossa vida que decidamos tratar.

Henry Miller, in "O Mundo do Sexo"

domingo, 20 de setembro de 2009

Ai... que prazer...

Póvoa de Varzim, 2009 © Adelina Silva

Ai que prazer
não cumprir um dever
Ter um livro para ler
e não o fazer!
Ler é maçada,
estudar é nada.
O sol doira sem literatura.
O rio corre bem ou mal,
sem edição original.
E a brisa, essa, de tão naturalmente matinal
como tem tempo, não tem pressa...

Livros são papéis pintados com tinta.
Estudar é uma coisa em que está indistinta
A distinção entre nada e coisa nenhuma.

(...)
Fernando Pessoa

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

Observar é preciso

Santiago de Compostela, 2009 © Adelina Silva

Porque será que sentimos um desejo de proteger ao observarmos o ser amado que não se sabe observado? Porque será que nos dói o coração ao vermos um par de sapatos abandonado? Ou o ser amado que dorme? Pode ser que o corpo adormecido do ser amado expresse todo o patético desta ausência, todo o desamparo de quem ignora que está a ser observado...Os actores são pagos para fingir que não sabem que estão a ser observados, mas é claro que eles esperam a cooperação de quem os observa, e quase sempre a obtêm. E também há os actores que não são pagos (pensei eu): esses é que é preciso observar.

Martin Amis, in "Money"

domingo, 13 de setembro de 2009

Afinação


Porto, 2009 © Adelina Silva


Assim como do fundo da música
brota uma nota
que enquanto vibra cresce e se adelgaça
até que noutra música emudece,
brota do fundo do silêncio
outro silêncio, aguda torre, espada,
e sobe e cresce e nos suspende
e enquanto sobe caem
recordações, esperanças,
as pequenas mentiras e as grandes,
e queremos gritar e na garganta
o grito se desvanece:
desembocamos no silêncio
onde os silêncios emudecem.
Octavio Paz, in "Liberdade sob Palavra"


Porto, 2009 © Adelina Silva


domingo, 6 de setembro de 2009

Porque não te calas?

Magaluf/Palma Nova, 2009 © Adelina Silva

Quando se conta a outrem um segredo este
desmaia: a palavra
torna-se pele
sem leão lá dentro.

Não é mais segredo e não o sendo
finge ser lembrança
de fabrico imperfeito:
um cliqueti no silêncio escancara

a dantes inamovível porta
e virada a página acha-se apenas
uma moeda
que não corre já.

Júlio Pomar, in "TRATAdoDITOeFEITO"


sexta-feira, 4 de setembro de 2009

Duplicidade

Santiago de Compostela, 2009 © Adelina Silva

Muita coisa, que em certas fases do homem lhe dificulta a vida, serve, numa fase superior, para lha facilitar, porque esses homens aprenderam a conhecer maiores complicações da vida. O inverso sucede igualmente: é assim, por exemplo, que a religião tem um duplo rosto, conforme uma pessoa ergue para ela o olhar, para que ela o livre da sua cruz e das suas penas, ou baixa para ela o olhar como para as cadeias que lhe foram postas, a fim de que não suba pelos ares demasiado alto.

Friedrich Nietzsche, in “Humano, Demasiado Humano”

quarta-feira, 2 de setembro de 2009

Landscape

© Adelina Silva



A paisagem faz a raça. A Holanda é uma terra pacífica e serena, porque a sua paisagem é larga, plana e abundante. A paisagem que fez o grego, era o mar, reluzente e infinito, o céu, sereno, transparente, doce, e destacando-se sob aquela imobilidade azul, um templo branco, puro, augusto, rítmico, entre a sombra que faz um grupo de oliveiras. A paisagem do romano é toda jurídica: as terras ásperas, a perder de vista, separadas por marcos de tijolo; uma grande charrua puxada por búfalos, vai passando entre os trigos; uma larga estrada lajeada, eterna, sobre a qual rolam as duas altas rodas maciças dum carro sabino; uma casa coberta de vinha branqueja ao longe, na planície. Não importa a cor do céu: o romano não olha para o céu.


Eça de Queirós, in “O Egipto”