domingo, 24 de fevereiro de 2013

A Vida em Espiral

Roma, 2013 ©  Adelina Silva


O amor é um orgasmo entre duas lágrimas
A lágrima é um lago rodeado de estertores
O estertor é um vulcão de vento
O vento é o caminho dos cantos
O canto é um mistério da boca
A boca é um abismo antes do peito
O peito é outro abismo entre dois sangues
O sangue é o motor que nutre o acto
O acto é uma dança contra o tempo
O tempo é o que mede espaços até então não numerados
A cabeça é um nó sobre o pescoço
O pescoço é como um istmo entre duas selvas
A selva é o ancestral do deserto
O deserto é um corpo já bebido
Beber não apaga o fogo na consciência
A consciência é outro relógio de areia
A areia faz do cacto um rei antigo
O antigo nos modela como a uma criança
Uma criança é o passado dos corpos
E o corpo é um combate que se perde
E assim
A vida é um espaço exacto entre duas mortes
A morte é um espaço exacto entre dois fogos
O fogo é um espaço exacto entre dois frios
O frio é uma chama abaixo de zero
O zero é o silêncio antes do número
O número é o verbo matemático
A matemática é o cálculo da realidade
A realidade é o único incrível
O incrível é o que não podemos
E o que não podemos é o que queremos.

Patricio Manns (poeta chileno)

sábado, 23 de fevereiro de 2013

A Imperfeição dos nossos Sentidos


Póvoa de Varzim, 2013 ©  Adelina Silva


Se os nossos sentidos fossem perfeitos, não precisávamos de inteligência; nem as ideias abstractas de nada nos serviriam. A imperfeição dos nossos sentidos faz com que não concordemos em absoluto sobre um objecto ou um facto do exterior. Nas ideias abstractas concordamos em absoluto. Dois homens não vêem uma mesa da mesma maneira; mas ambos entendem a palavra «mesa» da mesma maneira. Só querendo visualizar uma coisa é que divergirão; isso, porém, não é a ideia abstracta da mesa.
Fernando Pessoa, in "Ricardo Reis - Prosa"

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

Eu Sou do Tamanho do que Vejo

Paris, 2012 ©  Adelina Silva

Da minha aldeia vejo quanto da terra se pode ver no Universo...
Por isso a minha aldeia é tão grande como outra terra qualquer
Porque eu sou do tamanho do que vejo
E não, do tamanho da minha altura...
Nas cidades a vida é mais pequena
Que aqui na minha casa no cimo deste outeiro.

Na cidade as grandes casas fecham a vista à chave,
Escondem o horizonte, empurram o nosso olhar para longe de todo o céu,
Tornam-nos pequenos porque nos tiram o que os nossos olhos nos podem dar,
E tornam-nos pobres porque a nossa única riqueza é ver.

Alberto Caeiro, in "O Guardador de Rebanhos - Poema VII"


segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013

Não existe eu ou tu


Roma, 2013 ©  Adelina Silva


Eu amo-te sem saber como, ou quando, ou a partir de onde. Eu simplesmente amo-te, sem problemas ou orgulho: eu amo-te desta maneira porque não conheço qualquer outra forma de amar sem ser esta, onde não existe eu ou tu, tão intimamente que a tua mão sobre o meu peito é a minha mão, tão intimamente que quando adormeço os teus olhos fecham-se.
Pablo Neruda