terça-feira, 30 de outubro de 2012

Espelho de um momento

Gondomar, 2011 © Adelina Silva

Ele dissipa a claridade
Mostra aos homens as imagens sutis da aparência
Arrebata aos homens a possibilidade de se distraírem.
É duro quanto a pedra,
A pedra informe,
A pedra do movimento e da rua,
E seu brilho é tal que todas as armaduras, todas as máscaras se deformam.
O que a mão tomou desdenha mesmo de tomar a forma da mão.
O que foi compreendido não existe mais,
A ave se confundiu com o vento,
O céu com sua verdade
O homem com sua realidade.


Paul Éluard, in "Poemas"

sábado, 27 de outubro de 2012

Quem sou e quem fui

© Adelina Silva

Se recordo quem fui, outrem me vejo,
E o passado é o presente na lembrança.
Quem fui é alguém que amo
Porém somente em sonho.
E a saudade que me aflige a mente
Não é de mim nem do passado visto,
Senão de quem habito
Por trás dos olhos cegos.
Nada, senão o instante, me conhece.
Minha mesma lembrança é nada, e sinto
Que quem sou e quem fui
São sonhos diferentes.


Ricardo Reis, in "Odes"

quarta-feira, 24 de outubro de 2012

Ponte de tédio

Bilbao, 2012 © Adelina Silva

Eu não sou eu nem sou o outro,
Sou qualquer coisa de intermédio:
Pilar da ponte de tédio
Que vai de mim para o Outro.


Mário de Sá Carneiro, in "Indícios de Oiro"

terça-feira, 23 de outubro de 2012

Tenho ganas...

Póvoa de Varzim, 2012 © Adelina Silva

Descasquei o camarão,
Tirei-lhe a cabeça toda.
Quando o amor não tem razão
É que o amor incomoda.


Fernando Pessoa, in "Quadras ao gosto popular"

quarta-feira, 17 de outubro de 2012

Um grande lagarto verde

Madrid, 2012 © Adelina Silva

Por esse Mar das Antilhas
(que também Caribe chamam)
batida por ondas duras
e ornada de espumas brandas,
sob este sol que a persegue,
sob o vento que a rechaça,
cantando em lágrima viva
navega Cuba em seu mapa:
um grande lagarto verde,
com olhos de pedra e água.
(...)


Nicolás Guillén

domingo, 14 de outubro de 2012

Sorriso Audível das Folhas

Madrid, 2012 © Adelina Silva

Sorriso audível das folhas
Não és mais que a brisa ali
Se eu te olho e tu me olhas,
Quem primeiro é que sorri?
O primeiro a sorrir ri.

Ri e olha de repente
Para fins de não olhar
Para onde nas folhas sente
O som do vento a passar
Tudo é vento e disfarçar.

Mas o olhar, de estar olhando
Onde não olha, voltou
E estamos os dois falando
O que se não conversou
Isto acaba ou começou?


Fernando Pessoa, in "Cancioneiro"

domingo, 7 de outubro de 2012

Guernica ao Jantar

Madrid, 2012 © Adelina Silva

Porque chora esta mulher
de rosto fragmentado e colorido?
Será que pressente a tragédia
monocolor de Guernica, o sangue e o grito,
o fogo vindo do céu, a súplica vinda da terra?
Será que chora por tudo aquilo
que ouviu contar, por tudo aquilo
que lhe roubou o sono e o brilho dos olhos?
Se beleza existe neste rosto inclinado,
neste olhar oblíquo e baço
e no esgar da boca que se dissolve,
é na aflição dos dedos que se desmente.
A mulher que chora é Espanha
garbosa, saborosa, arrebatada
a chorar os irmãos mortos pelos irmãos
na tragédia civil das baionetas
trespassando os corpos fora das arenas.
É Espanha desgostosa a coleccionar imagens
para a grande tela da dor de uma pátria
a morrer em silêncio às portas das catedrais
que Deus, inclemente, deixou de visitar.


José Jorge Letria, in "Sobre Retratos"