quinta-feira, 29 de março de 2012

Biografia


Póvoa de Varzim, 2007 © Adelina Silva

Nem sempre se deve desconfiar das pessoas
graves, aquelas que caminham com o pescoço inclinado para baixo,
os olhos delas a tocar pela primeira vez o caminho que os pés confirmarão
depois.
Às vezes elas vêem o céu do outro lado do caminho que é o que lhes fica por baixo
dos pés e por isso do outro lado do mundo.
O outro lado do mundo das pessoas graves parece portanto um sítio longe dos pés
e mais longe ainda das mãos
que também caem nos dias em que o ar pode ser mais pesado e os ossos
se enchem de uma substância morna que não se sabe bem o que é.
Na gravidade dos pés e da cabeça, e também dos olhos, com que nos são alheias
quando as olhamos de frente rumo ao lado útil do caminho que escolhemos, essas
pessoas arrastam uma nuvem prateada que a cada passo larga uma imagem daquilo
que foram ou das pessoas que amaram.
Essas imagens podem desaparecer para sempre se forem pisadas quando caem no
chão. A gravidade dos pés e da cabeça, e também dos olhos, dessas
pessoas, é, por isso, uma subtil forma de cuidado.

Rui Costa, in "A Nuvem Prateada das Pessoas"

segunda-feira, 26 de março de 2012

Agita-se o mar


Póvoa de Varzim, 2007 © Adelina Silva

O Mar agita-se, como um alucinado:
A sua espuma aflui, baba da sua Dor...
Posto o escafandro, com um passo cadenciado,
Desce ao fundo do Oceano algum mergulhador.
(...)

Alberto de Oliveira, in "Bíblia do Sonho"

sexta-feira, 23 de março de 2012

É possível morrer de amor?


Paris, 2012 © Adelina Silva

(...)
Pudesse eu ser tu
E em tua saudade ser a minha própria espera.

Mas eu deito-me em teu leito
Quando apenas queria dormir em ti.

E sonho-te
Quando ansiava ser um sonho teu.
(...)

Mia Couto, in "idades cidades divindades"

quinta-feira, 15 de março de 2012

As mãos


Paris, 2012 © Adelina Silva

Aqui estão as mãos.
São os mais belos sinais da terra.
Os anjos nascem aqui:
frescos, matinais, quase de orvalho,
de coração alegre e povoado.
(...)
Não lhes toquem: são amor e bondade.
Mais ainda: cheiram a madressilva.
São o primeiro homem, a primeira mulher.
E amanhece.

Eugénio de Andrade, in "Até Amanhã"

terça-feira, 13 de março de 2012

Duas Irmãs


Póvoa de Varzim, 2009 © Adelina Silva

Cada irmão é diferente.
Sozinho acoplado a outros sozinhos.
A linguagem sobe escadas, do mais moço,
ao mais velho e seu castelo de importância.
A linguagem desce escadas, do mais velho
ao mísero caçula.
(...)
São estranhos próximos, atentos
à área de domínio, indevassáveis.
Guardar o seu segredo, sua alma,
seus objectos de toalete. Ninguém ouse
indevida cópia de outra vida.

Ser irmão é ser o quê? Uma presença
a decifrar mais tarde, com saudade?
Com saudade de quê? De uma pueril
vontade de ser irmão futuro, antigo e sempre?

Carlos Drummond de Andrade, in "Boitempo"

sábado, 10 de março de 2012

Escola é...



Porto, 2010 © Adelina Silva

Escola é...
O lugar onde se faz amigos,
Não se trata só de prédios, salas e quadros,
Programas, horários, conceitos...
Escola é sobretudo, gente,
Gente que trabalha, que estuda,
Que se alegra, se conhece, se estima.
O diretor é gente,
O coordenador é gente, o professor é gente,
O aluno é gente,
Cada funcionário é gente.
E a escola será cada vez melhor
Na medida em que cada um
Se comporte como, colega, amigo, irmão.
Nada de “ilha cercada de gente por todos os lados”.
Nada de conviver com pessoas e depois descobrir
Que não tem amizade a ninguém,
Nada de ser como o tijolo que forma a parede,
Indiferente, frio, só.
Importante na escola não é só estudar, não é só trabalhar,
É também criar laços de amizade,
É criar ambiente de camaradagem,
É conviver, é se “amarrar” nela!
Ora, é lógico que numa escola assim vai ser fácil
Estudar, trabalhar, crescer,
Fazer amigos, educar-se,
Ser feliz.
Paulo Freire

Porto, 2010 © Adelina Silva

quarta-feira, 7 de março de 2012

Bar Botequim


Zaragoza, 2011 © Adelina Silva

Este homem que entre a multidão
enternece por vezes destacar
é sempre o mesmo aqui ou no japão
a diferença é ele ignorar.

(...)

Sentam-no à mesa de um café
num andaime ou sob um pinheiro
tanto faz desde que se esqueça
que é homem à espera que cresça
a árvore que dá dinheiro.


Natália Correia, in "O Vinho e a Lira"

sábado, 3 de março de 2012

Com os teus passos de menina


Vale Pisão, 2012 © Adelina Silva

(...)
Esta deveria ser a hora
em que me recolheria
como um poente
no bater do teu peito
mas a solidão
entra pelos meus vidros
e nas suas enlutadas mãos
solto o meu delírio

É então que surges
com teus passos de menina
os teus sonhos arrumados
como duas tranças nas tuas costas
guiando-me por corredores infinitos
e regressando aos espelhos
onde a vida te encarou
(...)


Mia Couto, in "Raiz de Orvalho e Outros Poemas"